por Dão Real Pereira dos Santos
“Se os números frios não tocam a gente, espero que nomes consigam tocar.”
Este é o refrão da música “Inumeráveis”, de Bráulio Bessa, gravada por Chico César, que nos desafia a enxergar, por trás da invisibilidade dos números, as vidas, os sentimentos, as emoções, as relações e as histórias que estão morrendo a cada dia.
Todo os dias, somos colocados diante das estatísticas das mortes e do número crescente de casos de infecção pelo coronavírus. Já somam mais de 255 mil mortes e mais de 10 milhões de infectados. Números que assustam e sensibilizam gráficos e planilhas, mas são apenas números, nada mais do que números. O aumento da quantidade de vítimas a cada dia vai adquirindo uma certa naturalidade no senso comum. Os gráficos da pandemia vão se misturando com outros gráficos, como aqueles, incompreensíveis para muita gente, mas que os jornais insistem em exibir diariamente, que demonstram as flutuações e os humores dos mercados.
Não está nas mãos dos governantes o poder de dispor das vidas humanas
Ao contrário dos mercados, sempre distantes, no entanto, os números das mortes começam a se aproximar de nós, a cada dia, e vão se transformando em nomes, sobrenomes e apelidos de pessoas próximas, até que as estatísticas já não importam mais. Amigos, parentes, amigos de parentes, parentes de amigos, gente que tem amigos, que tem familiares que têm colegas, não são mais números invisíveis e frios de um flagelo previsível, ou um ponto isolado em um gráfico. São perdas irreparáveis, são vidas perdidas e vidas perdidas não voltam mais.
A pandemia começa a ser percebida em sua dimensão mais realista, concreta e trágica. Mas, afinal, o que se pode fazer contra um inimigo tão pequeno e tão poderoso, microscópico, capaz de destruir um organismo tão complexo como o nosso em tão pouco tempo? Para alguns, a covid é um castigo divino, para outros, uma simples gripezinha. E há também quem acredite ser produto de uma conspiração internacional.
A tragédia era anunciada e várias mortes seriam inevitáveis, pelas próprias circunstâncias de saúde dos que seriam infectados. Mas, muitas outras mortes poderiam ter sido evitadas. A ciência e a experiência internacional nos mostraram o que deveria ser feito e o que deveria ser evitado, os cuidados, as medidas de precaução e, também, os investimentos que seriam necessários para dar conta de enfrentar a pandemia, diminuir os riscos de contágio e salvar o máximo de vidas possível e antecipar medidas eficazes de imunização.
O fato é que por trás de cada morte, além daquelas realmente inevitáveis, houve escolhas, opções, ações e omissões. Por trás da tragédia que estamos vivendo, há, portanto, culpas e culpados. Há culpas difusas e coletivas, daqueles que não respeitaram as regras de prevenção, promoveram aglomerações, participaram de eventos festivos, clandestinos ou não, de eventos oficiais, muitos deles promovidos por negacionistas, frequentaram as praias cheias de gente, as festas de torcidas de futebol comemorando títulos, entre outros. Há culpas institucionais de não coibir com firmeza comportamentos irresponsáveis, de não instrumentalizar os serviços de prevenção e combate à pandemia, de deixar faltar oxigênio, respiradores, sedativos, servidores, leitos, medicamentos, e de não providenciar as vacinas em tempo para toda a população.
Mas há também culpas pessoais, individuais e funcionais de agentes públicos e governantes, que deixaram de adotar as medidas necessárias, não se anteciparam aos problemas, não planejaram nem coordenaram, de forma efetiva, ações de prevenção, que estimularam as aglomerações, que venderam ilusões de tratamentos precoces e que minimizaram o tamanho do problema.
Quantas mortes teriam sido evitadas se não tivesse faltado oxigênio em Manaus? Quantas mortes teriam sido evitadas se o distanciamento social tivesse sido praticado de forma séria? Quantas vidas poderiam ser salvas se houvesse garantia de renda emergencial, se as vacinas estivessem disponíveis há mais tempo, se não tivesse havido cortes no orçamento da saúde pública, se não tivesse havido tanta intervenção no Ministério da Saúde, se as autoridades tivessem estimulado o cumprimento das regras de prevenção e de isolamento?
Mortes que poderiam ser evitadas não são fatalidades. São consequências de ações, de omissões e de escolhas. Não se pode naturalizar a tragédia quando os danos poderiam reduzidos. Evitar a pandemia era impossível, sabemos disso, mas evitar mortes, não. Quantas vezes ouvimos expressões debochadas como: “e daí?”, “muitos vão morrer mesmo!”, “não sou coveiro”, “que que eu posso fazer?”, “só morrerão os velhinhos doentes”, “é a vida, todos vão morrer um dia”, “não dá para parar a economia”, “é só uma gripezinha”, e assim por diante?
Não está nas mãos dos governantes o poder de dispor das vidas humanas. Não lhes cabe nenhuma possibilidade de optar por não salvar vidas. Negar a ciência e o conhecimento em nome de dogmas, ideologias, religiões ou meras opiniões pessoais, estimulando atividades que potencializam o nível de contágio pelo vírus, colocando em risco as vidas, é muito mais do que mera irresponsabilidade administrativa ou má gestão. As escolhas políticas e administrativas não são livres, precisam ser justificadas e motivadas pelo interesse público e pelo que determina a Constituição Federal, e não há maior interesse público, numa pandemia, do que salvar vidas.
Se nas tragédias de Mariana, Brumadinho, da Boate Kiss, para citar apenas algumas, tornou-se absolutamente necessária a apuração das responsabilidades, tanto do setor privado como do setor público, não apenas por questões de indenização, mas principalmente por respeito à memória das vítimas e dos familiares, por que seria diferente em relação à pandemia? Há, sim, que se apurar as responsabilidades por tudo aquilo que poderia ter evitado mais mortes e que não foi feito, e por tudo aquilo que foi feito, mas que ajudou a aumentar o tamanho da tragédia.
Sim, Bráulio Bessa e Chico César estão certos, os nomes dos que morreram nos tocam profundamente, muito mais do que os números. E quando nos tocamos, de fato, queremos saber as causas, as circunstâncias e, se as mortes poderiam ter sido evitadas, porque não foram. Se houve responsabilidades e culpas, que haja punições. Afinal, a pandemia não é escudo, nem salvo conduto para qualquer ação ou omissão que atente contra a inviolabilidade do direito à vida [i] e o direito à saúde [ii].
i Artigo 5º da Constituição Federal de 1988
ii Artigo 196 da Constituição Federal de 1988
Edição: Marcelo Ferreira
Fonte: https://www.brasildefators.com.br/2021/03/04/evitar-a-pandemia-era-impossivel-as-mortes-nao