O deputado argentino pela Frente de Todos, Hugo Yasky, coalizão de apoio ao presidente Alberto Fernández, é um dos convidados da live “Tributação das grandes fortunas no Brasil e na América Latina” que ocorre nesta segunda-feira (28/06), promovida pelo Instituto Justiça Fiscal (IJF).
Nessa entrevista exclusiva ao IJF, ele conta como foi a aprovação do imposto sobre grandes fortunas no seu país em dezembro passado. Com 45 milhões de habitantes, o país vizinho tenta tributar cerca de 12 mil pessoas físicas e jurídicas que tenham declarado ativos acima de US$ 2,2 milhões. Destes, 10 mil pagaram no prazo, que era até 16 de abril, totalizando 80% do público previsto, arrecadando cerca de US$ 2,4 bilhões.
Mais de 200 recursaram à Justiça e outros estão sendo notificados a atualizar dados e pagar os tributos e multa. Chamada de Aporte Solidário, a Lei 27.605 se refere a uma contribuição única para minimizar os efeitos da pandemia. A alíquota varia de 2,25% a 5,25%, dependendo do tamanho da fortuna e se os patrimônios são mantidos localmente ou no exterior.
Além de deputado nacional, Hugo Yasky também ocupa a função de secretário-geral da Central dos Trabalhadores da Argentina desde 2006; presidente da Internacional da Educação para América Latina (IE-AL) e membro do Conselho Consultivo da Organização dos Estados Iberoamericanos (OEI).
O que foi decisivo para aprovar em dezembro de 2020 a Lei que tributa as grandes fortunas em parcela única, o chamado “Aporte Solidário”?
A necessidade do Estado em arrecadar recursos para enfrentar a pandemia e ser uma parcela única facilitaram a aprovação. Apesar disso, o partido político do ex-presidente Maurício Macri – Juntos por el Cambio – votou contra, do mesmo modo como outros blocos pequenos da oposição.
O bloco governista Frente de Todos não tem maioria própria na Câmara de Deputados. Nossa capacidade de manobra muitas vezes é condicionada a possibilidade de somar votos de alguns pequenos blocos e o fato de que esse imposto seria extraordinário permitiu que os pequenos blocos acompanhassem ou não seria possível sua aprovação no Parlamento.
Qual o papel da pandemia nesse cenário?
Não apenas favoreceu, mas foi determinante para fazer o debate, aprovar a medida e fazer que começasse a se pagar o imposto. O contexto da pandemia foi imprescindível para entender por que pudemos avançar no debate. Se não estivéssemos nesse contexto, a Frente de Todos não teria colocado a proposta no início da sua gestão para discutir um tema que para os setores do poder concentrado é repulsivo.
Foi justamente por ter que enfrentar a pandemia com um Estado em que o Ministério da Saúde havia sido dissolvido pelo governo de Maurício Macri; o Sistema da Saúde havia sido desfinanciado e não contávamos com a quantidade mínima imprescindível de hospitais para evitar um colapso, como vimos em países vizinhos.
A covid-19 e o modo como a pandemia desnudou as aberrações e injustiças do modelo neoliberal que reduziu os orçamentos públicos destinados para a saúde, ciência, tecnologia, educação, favoreceram a possibilidade de avançar.
Como a população recebeu essa medida?
Em todas as pesquisas de opinião realizadas nos quatro meses desde o anúncio do Projeto de Lei até a aprovação o apoio sempre foi majoritário. Quando se perguntava sobre a tributação dos possuidores de grandes riquezas para enfrentar a pandemia a aprovação nunca baixou de 60% a 70%.
Isto tem um valor mais significativo se consideramos que os grandes meios de comunicação, como o Clarín, que seria similar ao O Globo no Brasil, mais os grandes canais de televisão e os diários de direita, sempre atacaram e trataram de gerar uma opinião contrária a sanção do imposto.
Em alguns casos trataram de semear incertezas de como reagiriam os mercados, defendendo que seria um sinal para intimidar investidores, etc. Mesmo com tudo isso contra, o apoio popular se manteve sempre alto.
Como o bloco governista avalia o volume de pagamentos até o momento?
Cerca de 80% dos que deviam pagar, cumpriram com a lei e a população viu com muito bons olhos. Avaliamos de forma muito positiva, especialmente frente à campanha de desprestígio dos meios de comunicação que vaticinavam que apenas 10% pagariam esse imposto.
Os que buscaram a Justiça para não pagar são majoritariamente de quais setores e o que isso revela?
O núcleo duro da oposição ao governo Frente de Todos é composta justamente por estes setores que hoje estão rebeldes, tratando de recorrer à Justiça para que anule o imposto. Esses grupos são os que estão vinculados de forma majoritária às grandes multinacionais do agronegócio, aos latifundiários representados na sociedade rural, aos grandes grupos de capitais financeiros e donos de multimeios.
Esse é o núcleo de empresários que co-governou durante os quatro anos do governo Macri e por isso tem permanentemente uma atitude hostil reativa ao governo e a qualquer iniciativa que pretenda modificar o quadro que herdamos do governo anterior em relação à distribuição da renda nacional.
Defendem com unhas e dentes cada centímetro de esquema de desigualdade que favoreceu os mais ricos e que herdaram do governo do qual foram parte.
O sistema tributário no Brasil faz com que a população desconheça que os mais pobres pagam proporcionalmente mais impostos que os ricos. Como ocorre no seu país?
Como no Brasil o tema tributário é ocultado ou é distorcido. A imprensa hegemônica mantém a falsa tese que a carga de impostos é excessiva. Encobrem que os que pagam a maior proporção dos impostos arrecadados pelo Estado são os setores da classe média e os mais pobres.
Na Argentina se arrecada majoritariamente pelo imposto sobre o consumo, praticamente não existem impostos que tributam a riqueza como esse que aprovamos por única vez.
Por isso a oposição foi tão forte e vários artigos e editoriais publicados naqueles dias se opunham ao tributo mesmo por única vez porque poderia gerar uma situação favorável para estabelecer este imposto de caráter permanente ou outro similar.
O que esse debate acrescentou?
Este debate permitiu desvelar a forma particularmente cuidadosa com que a imprensa econômica encobre ou distorce o tema tributário, fazendo os pobres acreditar que a carga impositiva que sentem no seu bolso é a mesma que sentem os mais ricos, quando sabemos que não é assim. A carga está invertida, pagamos mais os que menos temos.
Como a especulação financeira e a ameaça de fuga de investidores se coloca neste cenário?
Estamos tratando de retirar o véu de ocultação de ativos fora do país. Destaco que a Argentina tem o triste troféu de ser o país com mais fuga de capitais colocados nos paraísos fiscais. Isso sem dúvida, significa uma grave perda de recursos e um obstáculo ao objetivo de gerar uma economia com menos desigualdade.
A especulação financeira, a corrida cambial, a desvalorização dos proprietários de dólares -, que com uma só desvalorização acrescentam grandes fortunas de forma inusitada -, todos esses são como cânceres para a economia produtiva do país.
Sei que este esquema, em menor medida existe nos demais países da região, como Brasil e Colômbia, por exemplo. Os especuladores dizem que qualquer mudança fará como um cardume que se assusta e muda de rota, e o capital busque outro destino, sobretudo os especulativos.
Que estratégias podem ser adotadas frente à ameaça ou a migração do capital especulativo quando se implementam tributos como este?
O argumento que sempre esgrimam é que o capital financeiro busca os lugares com mais vantagens, por isso de deslocam, fogem. Reivindicam que não haja qualquer tipo de política de controle ou que signifique tributá-los com o argumento de que qualquer imposto que se ponha ao capital financeiro faz com que ele desapareça e busque lugares onde tenha maior rentabilidade.
Isto em parte é certo, mas também é certo que especulam permanentemente com este tipo de questão para dar-lhe racionalidade para que mantenhamos velhos esquemas tributários que alentam a desigualdade e a injustiça.
Como a articulação entre os diferentes países pode apurar meios fiscais para identificar as fortunas e tributá-las frente a migração especulativa?
Creio que seria importantíssima a articulação das políticas econômicas e as estratégias parlamentares para regular e impedir essas práticas. Do mesmo modo gerar instrumentos que desalentem a fuga permanente desse capital especulativo depositado fora do país. Isso requer inevitavelmente uma coordenação política regional.
É fundamental essa coordenação e creio imprescindível, no caso que voltemos a ter governos populares, que possam sincronizar suas ações no tema do capital especulativo. A entrada e saída de capital que tanto prejudica o equilíbrio da economia produtiva deve ser tratada no marco regional. Um só país é impotente frente à ‘deslocalização’ do capital financeiro na atualidade.
A vitória e anúncios do presidente Joe Biden tendem a influenciar o bloco latino-americano na tributação de grandes fortunas?
O triunfo de Joe Biden e, sobretudo, o discurso que fala do Estado e da Nação, anunciando a necessidade de tributar os ricos para enfrentar a pandemia tiveram um forte impacto nos meios locais. A direita ficou sem poder explicar como o próprio presidente dos EUA, que eles sempre colocam como exemplo, acabava de propor mais impostos para os mais ricos. Foi pelo menos um elemento propício na disputa discursiva para a argumentação de que nos propusemos a modificar os esquemas que mantém e acrescentam as desigualdades na distribuição da riqueza.
Qual a possibilidade de tornar esse tributo permanente?
Creio que essa discussão se dará no marco de uma reforma tributária que está projetada como parte do programa para desenvolvimento em breve, após a eleição que teremos em outubro. Se a correlação de forças se modifica a nosso favor na Câmara de Deputados ou se mantém igual ou pior. Se não somarmos mais deputados será muito difícil que se tenha espaço para essa reforma tributária.
Vamos ver a força da direita e seu rechaço ao imposto, saindo a mentir que a Argentina cobra comparativamente muito mais impostos que seus vizinhos da região. Será uma grande disputa que seguramente fará parte dos debates das eleições.
Desde já a vontade da Frente de Todos é que ocorra a Reforma Tributária baseada no princípio da justiça fiscal, ideia que sustentamos sempre no movimento popular e na esquerda. Que paguem mais os que mais têm.
Entrevista: Stela Pastore
Fotos: Prensa CTA