Enfrentar a desigualdade tributária no Brasil e a pandemia

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Ursula Dias Peres e Fábio Pereira dos Santos

19 de Maio de 2020

Uma contribuição emergencial sobre as altas rendas de pessoas físicas é fundamental para sobreviver à crise do coronavírus, financiar ações de assistência social e saúde, e apontar em direção a uma futura reforma tributária mais justa e progressiva

O Brasil é tido no senso comum como um dos países de mais alta carga tributária do mundo e propostas que visam melhorar a situação fiscal do país por meio de qualquer combinação de redução de despesas com elevação de tributos são violentamente atacadas. O objetivo deste artigo é mostrar que essa afirmação é falaciosa e que é, além de necessário, justo rever a tributação sobre a renda no país para que se possa enfrentar a pandemia da covid-19 e ao mesmo tempo abrir caminho para uma reforma tributária equânime.

A carga tributária dos países combina diferentes tipos de taxação, sobre a renda, sobre o consumo e a produção e sobre o patrimônio. Então, quando dizemos que a carga tributária de um país é de X% do PIB, estamos dizendo que o conjunto de tributos (impostos, contribuições e outros) incidentes sobre renda, consumo, produção e patrimônio somam esse percentual do Produto Interno Bruto.

O gráfico a seguir mostra a carga tributária brasileira em comparação a outros países, no ano de 2017. É possível perceber que os tributos cobrados no Brasil, como percentual do PIB, são um pouco inferiores à média da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), bastante inferiores a vários países europeus, superiores a outros países, como alguns da América Latina, Japão e EUA. Esses dados mostram que não é verdadeira a afirmação que a tributação brasileira é uma das maiores do mundo. Nossa tributação é, isso sim, comparável com a média dos países da OCDE.

O gráfico permite entender também parte do incômodo de vários setores da sociedade com a carga tributária brasileira: ela é muito elevada sobre o consumo e a produção. Impostos indiretos como ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), ISS (Imposto sobre Serviços) e IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e contribuições como PIS/Cofins (Programa de Integração Social/Contribuição para Financiamento da Seguridade Social) e sobre a folha de salários produzem uma alta taxação sobre a cadeia produtiva e por vezes bitributação. Nesse tipo de taxação, o Brasil está no topo da lista de países da OCDE, muito acima da média. Já no que diz respeito à taxação de renda, lucros, ganhos de capital e patrimônio, a tributação brasileira é muito baixa quando comparada aos países da OCDE.

Essa é uma situação que traz consequências tanto para a desigualdade social quanto para o desenvolvimento econômico brasileiro, pois a excessiva tributação sobre produção e consumo é contraproducente para o crescimento econômico. Assim, uma reforma tributária que promova ajustes em todos os tributos sobre produção, consumo, renda e patrimônio é fundamental. Propostas de reforma já estavam em discussão no Congresso Nacional antes do início da pandemia da covid-19 e, dados os gastos necessários ao enfrentamento da pandemia e a queda da atividade econômica e, consequentemente, da arrecadação, terão necessariamente que ser retomadas.

A construção de uma proposta sobre o melhor ajuste e modulação de tributos para uma reforma tributária envolve também acordos entre estados e municípios, com consequências para o financiamento de várias políticas públicas.

Diante da crise sanitária, social e econômica que estamos vivendo é forçoso reconhecer que a arrecadação dos impostos sobre consumo de bens e serviços cairá drasticamente.

No curto prazo, a União pode e deve se endividar para enfrentar a crise, inclusive para transferir recursos a estados e municípios. Mas esse recurso ao endividamento não prescinde de adotarmos medidas emergenciais no campo tributário que possam sustentar, ainda que parcialmente, os gastos públicos necessários neste momento. A crise tende a se prolongar e medidas como a Renda Básica Emergencial e o apoio aos estados e municípios vão se estender no tempo.

Diante deste cenário, uma contribuição emergencial sobre as altas rendas de pessoas físicas, que permita ganhos de equidade vertical e horizontal, é fundamental para sobreviver à pandemia, financiar ações de assistência social e saúde e apontar em direção a uma futura reforma tributária mais justa e progressiva.

Como apresentamos em texto publicado em 11 de abril, nossa proposta de contribuição incidiria sobre quaisquer rendas a partir de 15 salários mínimos mensais com três alíquotas, como mostra a tabela a seguir:

Com essa tributação, incidente sobre qualquer tipo de renda de pessoas físicas, espera-se arrecadar aproximadamente R$ 140 bilhões para financiar alguns meses de Renda Básica Emergencial e parte da transferência a estados e municípios. O gráfico a seguir mostra a complementação entre o IRPF (Imposto de Renda da Pessoa Física) e a contribuição aqui proposta. Para rendimentos até 15 salários mínimos mensais não haveria nenhuma alteração na alíquota. A partir desse valor começaria a incidir a nova contribuição. A coluna azul mostra uma simulação com a nova alíquota efetiva. A coluna roxa mostra a alíquota efetiva do IRPF atual.

Essa contribuição seria adicional ao atual IRPF, e foi modulada para aumentar a progressividade da tributação sobre a renda, que hoje tem alíquotas decrescentes nos estratos superiores de renda (iniquidade vertical) e tributa de forma desigual os mesmos valores de renda se obtidos do trabalho ou de aplicações financeiras e ganhos de capital e não tributa dividendos, que são isentos no Brasil (iniquidade horizontal).

A cada dia a situação da pandemia se agrava no país, assim como torna-se mais complexa a situação do financiamento público das ações de saúde, de garantia de renda e de todas as políticas públicas. É urgente começarmos a adotar medidas tributárias que ajudem a enfrentar os efeitos da pandemia da covid-19 e a secular injustiça social brasileira.


Ursula Dias Peres é doutora em economia pela Eesp/FGV (Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas), professora da Each/USP (Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo), pesquisadora do CEM/USP (Centro de Estudos da Metrópole) e do King’s College London. Foi secretária adjunta de Planejamento, Orçamento e Gestão do município de São Paulo.

Fábio Pereira dos Santos é doutor em administração pública e governo pela FGV/SP, foi assessor especial do Ministério do Desenvolvimento Agrário e secretário adjunto de Planejamento, Orçamento e Gestão do município de São Paulo.

Colaborou Lucas Gomes com os gráficos.


Este texto foi publicado no site Nexo e acessível em https://www.nexojornal.com.br/ensaio/debate/2020/Enfrentar-a-desigualdade-tribut%C3%A1ria-no-Brasil-e-a-pandemia?utm_source=NexoNL&utm_medium=Email&utm_campaign=anexo