Desmistificando o Dia da Liberdade de Impostos

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Todos os anos o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, IBPT e a Associação da Classe Média, Aclame, divulgam que a partir de uma determinada data do ano o brasileiro deixará de ganhar dinheiro para o governo e só então passará a ganhar para si. É uma afirmação falaciosa fruto de uma simplória divisão da carga tributária pelo PIB. É como pegarmos a população brasileira e dividirmos pelo número de todos os clubes de futebol existentes. Como na célebre definição de estatística, “é como o biquíni, mostra tudo, menos o essencial”, perde-se uma boa oportunidade para fazer uma análise séria acerca da carga tributária no Brasil e as injustiças que ela contem e agrava.

Na realidade, como os brasileiros não são todos iguais e distribuem-se num gradiente de renda zero até renda multimilionária, para usar um conceito weberiano, ou são proletários, pequenos burgueses ou capitalistas, com as suas posições contraditórias de classe permeando-as, numa concepção marxista, a simplificação promovida esconde diferentes efeitos. A estrutura tributária brasileira é altamente regressiva – o peso dos impostos recai sobre os mais pobres – e contribui, portanto, com a concentração de renda. Não é surpresa, então, a manchete do Brasil de Fato “Tributos são o principal agente da concentração de renda” , de 26-05-2008, baseada em trabalho do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, IPEA, “Justiça Tributária: iniquidades e desafios”, publicado em 15-05-2008. Verdade seja dita, pululam na internet trabalhos sérios de cunho científico demonstrando a regressividade de nosso sistema tributário, mas, por incrível que pareça, a repercussão é pífia.

Ao olharmos com mais atenção a estrutura tributária no Brasil e fugirmos da data cabalística da “liberdade de impostos”, conforme denominação dada pela Aclame, vemos então que há brasileiros que já deixaram de pagar impostos em fevereiro e outros que continuarão a pagar até julho ou mais além! Isto se dá porque alguns setores são mais organizados e conseguem isenções, alíquotas menores, bases de cálculo presumidas ou simplesmente diminuídas, diferimentos para recolhimentos e outras diferenciações em relação aos demais de modo que sua contribuição para a sociedade/Estado é bastante reduzida. Por outro lado, a população de baixa renda vê seus parcos rendimentos serem consumidos pelos impostos sobre o consumo incidentes sobre os produtos de primeira necessidade. Esta situação está bem representada no gráfico apresentado no estudo Indicadores de Equidade do Sistema Tributário Nacional, produzido pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social composto por ministros de Estado e 87 conselheiros da sociedade civil.

O fundamento moderno para a cobrança dos tributos baseia-se no princípio da capacidade contributiva do contribuinte, princípio este flagrantemente inobservado na atual estrutura tributária, conforme gráfico apresentado: as classes altas jogam o peso do Estado para as classes mais baixas. Em parte, isso foi possível durante muitos anos pela alegação falaciosa de que a justiça tributária somente poderia ser feita na despesa pública deixando-se de fora a discussão acerca da receita pública. Na verdade, nem isso é feito, pois a despesa pública brasileira também é concentradora de renda, mas isto deve ser tema de outro texto. Assim, considerando a afirmação do economista inglês Nicholas Kaldor, de que o sistema tributário reflete a estrutura de poder em uma nação, é chegada a hora de discutir se queremos um país mais harmônico, democrático e com mais justiça fiscal.


Texto originalmente publicado em 19-05-2010 no blog "Falando em Justiça Fiscal …"

Marcelo Ramos Oliveira é associado do IJF.