‘Desigualdade social é opção política e ideológica’, afirma o economista Thomas Piketty

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Fernanda Canofre
29-09-2017
“Determinação política é mais importante do que determinação econômica”. “Desigualdade social é opção política e ideológica”. “A História é importante, mas não deveria ser superestimada, nem encobrir a responsabilidade política dos que ainda estão vivos”. “Nada na globalização faz com que a distribuição igualitária [das riquezas] seja impossível”. “Há muitos exemplos de países que cresceram economicamente diminuindo a desigualdade”. Essas foram algumas das premissas lançadas pelo economista francês Thomas Piketty para um Araújo Viana lotado, na noite desta quinta-feira (28), em Porto Alegre, no Fronteiras do Pensamento.
O economista virou pop com o best-seller “O Capital no Século XXI”. Durante as eleições de 2014, no Brasil, Dilma Rousseff (PT), Luciana Genro (Psol) e Armínio Fraga o apontavam como leitura do momento e citavam seu estudo. Agora, Piketty, que diz que não sabe muito sobre o Brasil, está coordenando um grupo de pesquisas que promete aproximar seu foco da realidade brasileira. Virado para os países do Brics, ele busca entender o que aconteceu com o desenvolvimento de países como Brasil, a China e a Índia.
Na palestra, O avanço da desigualdade e a globalização, que ele havia traçado em quatro partes, decidiu pular uma delas, para focar especialmente no trecho em que poderia falar da situação específica do Brasil. A fala foi um eco à pesquisa recente de um orientando seu, o irlandês Marc Morgan, divulgada no início do mês, que revelou que, embora a renda da população mais pobre do Brasil tenha aumentado cerca de 1% de 2001 a 2015, a desigualdade entre a ponta e a base da pirâmide também cresceu.
A análise inicia em 2001 porque não haviam dados tributários anteriores disponíveis. O estudo revela que 50% da população mais pobre do país passou de uma renda correspondente a 11% da renda total do país, para 12%. Entre os fatores que teriam influenciado para isso estão o aumento progressivo do salário mínimo e a criação de programas como o Bolsa Família.
“Concordo que a pobreza diminuiu, mas pode ser melhor, pode diminuir ainda mais com a redução da desigualdade. A desigualdade não é só injusta, ela afeta o crescimento econômico também. Não tenho problemas com o capital ou a propriedade privada, mas devemos ter instituições públicas fortes para que levem [a um equilíbrio]”, defendeu ele, respondendo a perguntas ao final. “Mas, depois da Queda do Muro de Berlim, começou uma loucura ideológica de que o mercado seria capaz de se regular por conta própria. Não funciona”.
Na fala durante o Fronteiras, Piketty revelou que uma das maiores dificuldades que encontrou enquanto escrevia “O Capital no Século XXI” foi a falta de dados e estatísticas sobre países emergentes. A maioria deles oferecia apenas números oficiais, geralmente levantados em pesquisa domiciliar e auto-declaração. O pesquisador ressalva, porém,  que os números precisariam ainda ser cruzados com outras variáveis, como dados administrativos, imposto de renda, para aproximar o retrato à realidade.
O levantamento possível de ser realizado, por sua vez, revelou 

que na escala da desigualdade mundial, a região do Oriente Médio, é líder. Em seguida, estão África do Sul e Brasil. Depois, Índia, Estados Unidos, China e a média da Europa Ocidental. Ainda assim, o Brasil se mantém, segundo ele, como “um dos mais, senão o mais desigual” entre os países.
E essa desigualdade, segundo ele, não é simbólica. Se ela apenas representasse um pequeno grupo de indivíduos, sem importância na realidade do macro, não haveria problema. Mas, o que vemos é que parte considerável da renda se concentra nas mãos da minoria, enquanto a outra parte da população tem a renda estagnada. O preço a ser pago por essas diferenças é alto.
História é importante, mas não é tudo
“A História é importante, mas não deveria ser superestimada, nem encobrir responsabilidade política dos que ainda estão vivos”, defende Piketty. Ao mesmo tempo que não há como negar que o Brasil sofre os efeitos de ter sido o último país a abolir a escravidão, quando os escravos eram quase 30% de sua população, existem mais fatores a serem analisados do que o passado, para o economista. Por que a democracia, por exemplo, não levou à redução da desigualdade?
Segundo Piketty, o país nunca enfrentou de frente as reformas fiscais que precisaria encarar. Um exemplo claro disso é na comparação de como cada país enfrenta a questão do imposto progressivo – fazer com que quem tem mais, pague mais. Nos EUA, na década de 1920, o sistema era avançado. Em alguns casos, chegava a alíquotas de 80%. “Isso não destruiu o capital americano. Nós teríamos percebido se tivesse acontecido”, ironizou.
Já em países como a Alemanha e a França o sistema só foi adotado diante da guerra, mediante uma obrigação. Há pouco mais de um século, os impostos quase não existiam na França e não se falava em aumentá-los. A imprensa da época defendia que “os ricos não tinham que pagar mais”. Quando a Primeira Guerra Mundial começou, em 1914, porém, a elite se dobrou para ajudar nos esforços de guerra. Primeiro, os impostos eram destinados ao Exército e armas, mas, quando a guerra acabou passaram a servir para investimentos em escolas e saúde.
No Japão, há dois anos, os impostos sobre grandes heranças passaram de 45% para 55%. Em comparação, no Brasil, eles variam entre 3% e 4%. Uma das disparidades daqui, para o economista. “São lições. Ao invés de esperar por um choque político, a esperança é que possamos melhorar sem eles”, afirmou Piketty.
O conto de fadas da meritocracia
O francês também se referiu a um dos mitos favoritos da direita, que ajuda a ilustrar a desigualdade moderna. A meritocracia, nas palavras de Piketty, “é um discurso que todo mundo acha ótimo, mas há a realidade da vida”. Ao analisar especificamente o caso da educação nos EUA, a pesquisa do economista revela que há uma relação direta entre a renda dos pais e a probabilidade de que o filho frequente uma universidade. Traduzindo em números: enquanto as chances de filhos de famílias pobres giram em torno de 20%, no caso das famílias ricas elas chegam a 95%.
O estudo não analisa a qualidade das universidades a qual cada um teria acesso. Mas, o economista voltou a defender uma de suas máximas, de que o conhecimento é uma das maiores forças para diminuir a desigualdade.
Piketty apresentou gráficos comparando séries da economia nos Estados Unidos e na Europa, durante o século XX, que equacionavam variáveis como ganho de capitais, booms nas bolsas de valores e comportamentos a longo prazo. As duas economias começam o século mostrando desigualdade social e com queda significativa na renda depois das duas guerras mundiais. O aumento da desigualdade, no entanto, foi menos dramático em países da Europa ocidental e do Japão, do que nos Estados Unidos.
Para o francês, a inserção de economias como Índia e China no cenário, graças à globalização, mudaram o mercado. A disposição de mão de obra barata ajudou a aumentar a desigualdade e mudou o mapa da produção de bens de consumo. Segundo os números levantados por Piketty, em 2014, a renda per capita da parcela da população que representa os 1% mais ricos equivalia a 81 vezes a de alguém pertencente a classe dos 50% mais pobres. “O crescimento na desigualdade nos EUA, em anos recentes, se deve ao crescimento da desigualdade entre a renda de trabalhadores mais qualificados e o colapso nos rendimentos dos 50% mais pobres”, apontava um de seus slides.
“Quanto a isso, não há muito o que se fazer a respeito. O problema é que os EUA estão tão sujeitos à globalização quanto qualquer outro país”, diz ele. Para o economista, a globalização é apenas uma das explicações. Além dela, há ainda a influência de políticas que foram adotadas e de como agem as instituições.
Choques políticos
Uma política cada vez mais baseada em conflitos (com base em identidade e xenofobia) e não mais em classes, seria uma das explicações para o crescimento da desigualdade no mundo. A globalização e a competição gerada por ela, que dificultam uma distribuição vertical de riquezas, também. Por outro lado, ainda que seja um movimento inevitável, nada na globalização diz que a distribuição igualitária é impossível. Basta que os próprios Estados criem regulamentações e ferramentas para isso. O que chega ao cerne da teoria de Piketty: a desigualdade social é uma opção política e ideológica.
A História da desigualdade e da riqueza é sempre política, envolve crenças e nacionalismos. Existem forças poderosas tanto para o lado da esquerda, quanto da direita. O que define quem vai vencer é o conjunto de instituições públicas. Para Piketty, isso tem se expressado em um crescente. Basta ver a disputa Emmanuel Macron e Marine Le Pen, na França. Ou como Donald Trump investe retoricamente contra a população latina que vive nos EUA. Ou ainda a culpabilização de imigrantes do leste europeu nos discursos do Brexit (campanha que pedia a saída da Grã-Bretanha da União Europeia).
“Não é coincidência que o populismo de direita tenha surgido na Europa e nos Estados Unidos, onde o aumento da desigualdade foi mais intenso. Não é coincidência que isso acontece agora, 30 anos depois dos governos de Ronald Reagan (EUA) e Margaret Thatcher (Reino Unido). Eu gostaria que a elite brasileira fosse mais inteligente do que foi a europeia e aceitasse discutir reforma fiscal”, afirmou ele.
As reformas para como os Estados cobram e usam os impostos seriam a ferramenta para reverter as curvas de desigualdade de forma democrática e pacífica. Uma política que se baseia em discussões de classes, para o Piketty, é mais construtiva porque integra mais partidos e grupos ao debate. Enquanto a política de identidade, que tem gerado os choques políticos atuais, toma por base divisões por religião e etnias.
Piketty diz que não pregar o fim da desigualdade, mas se a seguridade social era uma pauta que conseguia unir vários grupos no pós-guerra, é preciso encontrar uma nova pauta ferramenta que possa fazer o mesmo agora. Incluir políticas públicas de bem estar social em itens de tratados, não apenas como notas de rodapé, seria um começo para isso.
“O principal inimigo, para mim, é sempre o nacionalismo, especialmente o nacionalismo intelectual. É importante aprender com a experiência de outros países, é importante aprender com esses dados para olhar melhor para o futuro”, concluiu.


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