por Márcio Calvet Neves*
Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil
No Brasil, fomos educados a naturalizar a desigualdade. A extrema pobreza convive ao lado de demonstrações de riqueza sem chocar e com isso muitos acham a desigualdade uma característica imutável da nossa sociedade.
Só que a desigualdade é sempre decorrente de opção legislativa. Da mesma forma que muitas vezes escolhemos a desigualdade como política pública (como exemplo, os incentivos fiscais para a educação e saúde privadas; a pejotização indiscriminada; os diversos benefícios fiscais para o topo da pirâmide social etc.), também podemos mudar o rumo e eleger o combate à desigualdade como prioridade. E se assim fizermos, o passado recente de outros países mostra que o resultado é imediato.
Exemplo de reviravolta em índices de desigualdade sempre citado é a Europa do início do século 20 e sua transformação após a 2ª Guerra Mundial. Thomas Piketty chama a atenção para o caso da Suécia, um país que era extremamente pobre e desigual por causa de políticas públicas que priorizavam a propriedade a ponto de pessoas jurídicas poderem votar e o peso do voto do indivíduo variar de acordo com seu patrimônio, e que, após um governo ininterrupto de aproximadamente 60 anos do partido social-democrata, se tornou um exemplo de país igualitário. No caminho inverso pode-se citar os Estados Unidos, que se tornou um país de classe média ao submeter durante aproximadamente 50 anos as altas rendas a uma tributação do imposto de renda de, em média 80%, mas que, após a ascensão do neoliberalismo ao governo nas décadas de 70 e 80 hoje é muito mais desigual do que os países europeus.
Portanto, a desigualdade no Brasil irá aumentar ou cair, a depender da nossa escolha de política pública. Com o Projeto de Lei 1.087/2025 temos a chance de dar um salto importante na busca por um país mais igualitário.
O principal problema que o PL 1.087/2025 pretende resolver é que o Brasil tem uma das legislações de imposto de renda mais injustas do mundo. Enquanto o assalariado paga 27,5% sobre seus rendimentos, o topo da pirâmide social tem atualmente uma carga efetiva de 2,54%. Somos, há décadas, o paraíso fiscal da alta renda, que faz os planejamentos mais básicos para concentrar a renda em rendimentos isentos, principalmente dividendos.
Poderíamos solucionar a questão de formas mais diretas: tributar dividendos; criar alíquotas mais altas na tabela progressiva; extinguir o lucro presumido; alterar as Leis 9.249 e 9.532, fontes da maior parte dos planejamentos fiscais abusivos; reduzir as isenções sobre instrumentos financeiros; criar uma verdadeira norma antielisiva; tributar melhor o ganho de capital; combater a pejotização etc.
Tais soluções já foram propostas no passado, mas nunca passaram pelo lobby no Congresso, liderado por profissionais e investidores que se dão extremamente bem com o arcaico sistema. Sabendo disso, o governo escolheu uma alternativa inteligente de política incremental. Uma tabela progressiva, focada na alíquota efetiva, de até 10%, para quem ganha mais de R$ 600 mil por ano. No lugar de enfrentar os vários benefícios direcionados à alta renda, a solução proposta é mais simples.
Em 1959, Charles Lindblom estabeleceu os atributos básicos da teoria da política incremental, ou incrementalismo. Dado que questões políticas complexas têm inúmeras soluções potenciais, o especialista em políticas deve inevitavelmente se concentrar em opções limitadas. O núcleo do incrementalismo é o que Lindblom definiu como o “método de comparações limitadas sucessivas”, pelo qual as comparações são restritas a políticas que variam apenas marginalmente às políticas já implementadas e todas as outras alternativas são descartadas. As pequenas variações entre a política existente e a nova são o que permite mudanças incrementais. Claramente, tal forma de fazer política pública é perfeita para sociedades polarizadas, como o Brasil atual. Assim, por isso o governo mirou numa tributação mínima, sem alterar significativamente a estrutura do imposto de renda.
Para se isentar o rendimento até R$ 5 mil por mês e reduzir a tributação de quem ganha entre R$ 5 mil e R$ 7 mil, e assim beneficiar mais de 10 milhões de pessoas, optou-se por propor que 0,06% da população pague um IR mínimo, ainda muito baixo, bem inferior às alíquotas praticadas hoje nos demais países.
As empresas multinacionais que investem no Brasil reagiram bem à proposta. Apesar do PL 1.087/25 também criar uma tributação de dividendos remetidos para o exterior, na maior parte das vezes, o imposto retido no Brasil poderá ser compensado no país de origem. É uma questão de alocação mais justa entre países. Além disso, a alíquota de 10% sobre dividendos é baixa em comparação com as praticadas em países desenvolvidos e qualquer alegação de que espantará investimento estrangeiro é simplesmente errada. Uma chantagem estrutural rotineiramente usada, mas que tem zero fundamento.
Confusão entre alíquotas, fiscalização e imaturidade
Em relação à tributação doméstica, opositores do projeto alegam que a alíquota do IRPJ e da CSLL das empesas soma 34%, o que seria superior à tributação sobre a renda das pessoas jurídicas praticada nos países da OCDE. A questão é que aqui há uma clara confusão entre alíquota nominal e alíquota efetiva. Estudo da FGV mostra que a alíquota efetiva das empresas no Lucro Real no Brasil é de aproximadamente 20%, em linha com a média mundial.
Também é descabida a oposição ao PL 1.087/25 sob o argumento de que sua fiscalização será difícil. Um país como o Brasil, que recentemente aprovou com a Lei 14.596/23 uma complexa legislação de preços de transferência baseada no princípio arm’s length certamente tem uma fiscalização apta a calcular tributação mínima da pessoa física e controlar a distribuição disfarçada de lucros.
É valido se propor ajustes ao projeto para melhorá-lo, desde que não se retroaja no objetivo de buscar a modernização e a justiça fiscais. É lamentável o lobby para diminuir as alíquotas do imposto para quem ganha mais de R$ 600 mil por ano. Na verdade, as propostas deveriam ir no sentido contrário.
A opção pelo ganho incremental fez com que o governo fosse extremamente modesto na proposta de tributar quem ganha acima de R$ 600 mil por ano, pois o objetivo declarado foi de neutralidade fiscal do imposto de renda: apenas compensar a perda de arrecadação com a redução da tributação de quem ganha até 7 mil, estimada R$ 20,5 bilhões em 2026. Só que o Brasil é um país maduro o suficiente para propor que sua alta renda seja tributada de forma similar aos países desenvolvidos. Ou seja, as alíquotas efetivas para quem ganha acima de R$ 50 mil mensais deveriam ter sido maiores, possibilitando uma redução da carga tributária do mesmo montante na tributação indireta.
A proposta tem como teto de tributação uma alíquota efetiva de 10%, mas apenas para quem ganha acima de R$ 1.2 milhão por ano. Uma tributação efetiva ainda comparável aos de paraísos fiscais. Ora, se o artigo 40 da Lei 14.596/23 e a Instrução Normativa 2.265/25 definem paraíso fiscal como aquele que tributa a renda a uma alíquota inferior a 17%, o mínimo que se espera é que o brasileiro tenha uma alíquota efetiva de pelo menos 17%. Não faz muito sentido já começarmos a tributar a alta renda com uma alíquota que segundo nossa própria legislação é de paraíso fiscal. Em suma, ainda que se respeite a opção pela política incremental, o objetivo da neutralidade fiscal deveria ter sido mais amplo: do sistema como um todo, com realocação da tributação indireta para a tributação direta, e não apenas uma realocação no âmbito do imposto de renda.
Referências
Lindblom, C.E., 1959. The Science of “Muddling Through.” Public Adm. Rev. 19, 79. aqui
Piketty, Thomas (2024). Natureza, cultura e desigualdades. Uma Perspectiva Comparativa e Histórica. 1ª ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.
Pires, Manoel; Romero, Pedro; Marques, José Bergamin (2023). A tributação da renda corporativa no Brasil: estimativas da carga tributária efetiva a partir das demonstrações de resultado no período 2012-2022: aqui
Márcio Calvet Neves: é advogado empresarial tributário, integrante do Instituto Justiça Fiscal, LL.M em Taxation pela Georgetown University, Master of Public Policy and Management pela University of Melbourne, mestre e doutorando em Ciência Política (UFF).