Com quantos miseráveis se faz um bilionário?

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Por Dão Real Pereira dos Santos[1]
03-12-2019
A Constituição Federal, de 1988, determina, em seu artigo 3º, que temos o objetivo de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais. Não se trata de um desejo, mas, sim, de um compromisso que assumimos como Estado e sociedade. Mas afinal, a pobreza e a marginalização são problemas ou são sintomas? Essa questão é muito importante, pois, se tratarmos como problema o que é sintoma, é provável que nunca tenhamos sucesso. Quem atua na área da saúde já está acostumado com estes conceitos e sabe muito bem que a identificação dos sintomas é importante para diagnosticar corretamente as doenças e que os sintomas indesejados podem até ser amenizados, mas isso não significa que a doença tenha sido curada. Na área econômica, bons diagnósticos dos problemas também são produzidos a partir da identificação de seus indicadores sintomáticos.
Evidente que, se a pobreza e a marginalização são sintomas, para erradicá-los, precisamos encontrar suas causas e tratá-las. Mas que doença seria essa que poderia estar gerando sintomas tão terríveis como a pobreza e a marginalização? Esta me parece ser a questão fundamental que precisamos enfrentar. Sem respondê-la, podemos até amenizar circunstancialmente a pobreza e a miséria com medidas compensatórias, mas o problema persistirá e os sintomas voltarão a aparecer. Talvez seja essa a razão do porquê de ainda não termos conseguido cumprir este objetivo fundamental de forma efetiva, embora já tenhamos passado mais de três décadas desde a promulgação Constituição Federal.
A revista Forbes anunciou, recentemente, que, de 2017 a 2018, tivemos um aumento de 26 no número de bilionários no Brasil. Já temos 206 bilionários. Jorge Paulo Lemann, que ocupa a posição de homem mais rico do Brasil há sete anos, é dono de uma fortuna de R$ 104,7 bilhões[2]. Também temos no Brasil o maior banqueiro do mundo, Joseph Safra, com uma fortuna de R$ 85,04 bilhões.
O patrimônio deste seleto grupo aumentou R$ 230 bilhões, o que representa um crescimento de quase 2%, mais do que o crescimento do PIB brasileiro, de apenas 1,1%, de 2017 a 2018. No mundo inteiro, nestes dois anos, de crise econômica generalizada, até mesmo a riqueza dos bilionários reduziu, mas no Brasil aconteceu o contrário. Ou seja, os super-ricos brasileiros são imunes até mesmo às piores crises econômicas.
Fazendo um paralelo com a pobreza[3], que também cresceu neste mesmo período, podemos concluir, com razoável certeza, que ela é o resultado da excessiva acumulação e concentração de renda e riqueza.  O Brasil está voltando ao mapa da miséria. Em 2017 já tínhamos quase 55 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, 2 milhões a mais do que em 2016. A pobreza e a miséria são sintomas da concentração, pois não é o aumento da pobreza que produz acumulação de riqueza, mas o contrário, é a concentração de renda e riqueza nas mãos de poucos que impõe a falta de renda nas mãos de muitos. Com crescimento econômico insignificante, o surgimento de mais bilionários na constelação dos super-ricos só pode se dar às custas do aumento do número de pobres e miseráveis. Entender a pobreza e a miséria, não como problemas, mas como sintomas de um problema anterior, talvez seja a chave para o seu enfrentamento, pois conhecendo suas causas, os sintomas poderiam ser eliminados de forma mais efetiva.
Enquanto tratamos como exemplos de desempenho e de eficiência os lucros estratosféricos dos 4 maiores bancos que operam no Brasil, que registraram resultado de R$ 69 bilhões, em 2018, um crescimento de 19,88% em relação a 2017, e enquanto idolatramos os bilionários brasileiros como exemplos de sucesso individual, concedendo lugar privilegiado às suas opiniões, conselhos e avaliações sobre políticas sociais, a erradicação da pobreza e da marginalização dificilmente será alcançada, pois quem é causa do problema dificilmente será capaz de ditar a solução.
A erradicação da pobreza e da marginalização depende, portanto, de enfrentar suas verdadeiras causas. Somente o combate à extrema riqueza, através de um potente programa de redistribuição, é que permitirá o cumprimento do compromisso que assumimos em 1988 de erradicar de forma definitiva a pobreza e miséria. Sendo assim, a questão passa a ser: Como fazer?
A desigualdade de renda é própria das sociedades de mercado. A chamada desigualdade original, ou seja, aquela que é provocada pelo mercado, que não é muito diferente na América Latina e na Europa, só é atenuada, de forma efetiva, pela ação do Estado[4]. O Estado, aqui ou em qualquer lugar do mundo, é o principal fator de distribuição de renda e riqueza, que se efetiva através dos tributos e dos gastos públicos. Na Europa, a redução da desigualdade pela ação do Estado é realmente muito expressiva (índice de Gini declina de 0,49 para 0,23), enquanto, no Brasil e nos demais países latino-americanos, esta redução é muito modesta (de 0,51 a 0,42), basicamente por disporem de menores cargas tributárias e sistemas de tributação regressivos, o que onera mais os mais pobres do que os mais ricos.
Voltando ao título: “Com quantos miseráveis se faz um bilionário?”, é evidente que esta relação não pode ser considerada de forma assim tão simplista, como a pergunta sugere, mas é também muito claro que, em épocas de queda ou de estagnação da atividade econômica, o aumento da riqueza de alguns significa redução para outros. O PIB brasileiro cresceu apenas 1,1%, de 2017 a 2018, mas o PIB percapita, praticamente, não cresceu nada[5]. Assim, neste período, se os ricos ficaram mais ricos ou se mais gente ficou rica é porque os pobres ficaram mais pobres ou muito mais gente ficou pobre, pois, para que alguns fiquem com muito é preciso que muitos fiquem com muito pouco ou com nada.
Para erradicar a pobreza e a extrema pobreza é preciso enfrentar o problema da riqueza e da extrema riqueza. Atacando as causas, eliminamos os sintomas. Segundo o IBGE, com aproximadamente R$ 122 bilhões por ano (1,8% do PIB), seria possível deslocar para acima da linha da pobreza quase 55 milhões de pessoas, ou seja, bastaria elevar a carga tributária, dos 32,4% do PIB para 34,2%, aumentando a tributação sobre as altas rendas e as grandes fortunas, para obter as condições financeiras necessárias ao cumprimento do que determina o artigo 3º da Constituição Federal. Para erradicar a pobreza e a marginalização, portanto, é preciso reduzir as desigualdades, enfrentando a enorme concentração de renda e riqueza, e, assim, num futuro não tão distante, talvez possamos comemorar a redução da quantidade de bilionários e, por conta disso, finalmente, a construção de uma sociedade mais justa, livre e solidária, sem pobreza e sem miséria.
 
[1] Diretor do Instituto Justiça Fiscal e membro do coletivo Auditores Fiscais pela Democracia
[2] https://exame.abril.com.br/negocios/os-10-maiores-bilionarios-brasileiros-de-2019-segundo-a-forbes/
[3] Segundo o IBGE, de 2016 a 2017 houve um aumento no número de pessoas que passaram a viver abaixo da linha da pobreza e da extrema pobreza.
[4] Em média, para um conjunto de países desenvolvidos, o coeficiente de Gini declina de 0,49 para 0,23, por conta da política fiscal, enquanto nos países da América Latina, declina de 0,51 para 0,42 (ANFIP/FENAFISCO – Reforma Tributária Necessária, pg 35 – dados: CEPAL/2015)
[5] O PIB percapita brasileiro teve crescimento de 0,3% entre 2017 e 2018.


Este é o 3º artigo da série Como erradicar a pobreza e a marginalização. Os demais artigos são:
1 – Erradicação da pobreza tributando a riqueza

2 – Bora acabar com a pobreza e reduzir a desigualdade?!?!