Apoiado pela velha mídia, Congresso pode aprovar projeto que desvincula o banco do governo — tornando-o refém da oligarquia financeira. Ideia, em declínio no mundo todo após a crise de 2008, aprofundaria desigualdades — e precisa ser freada
OUTRAS PALAVRAS CRISE BRASILEIRA
Publicado 03/12/2020 às 20:34 – Atualizado 03/12/2020 às 21:24
Introdução
No último dia 3 de novembro o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei Complementar (PLP) 19/2019, que cria a autonomia do Banco Central do Brasil (BACEN). O projeto foi enviado à Câmara dos Deputados, onde também tem fortes chances de aprovação. A autonomia do BACEN é apoiada pela grande mídia como um passo essencial para a credibilidade da política monetária.
Este artigo tem o objetivo de analisar se o Brasil ganha com a autonomia do BACEN ou se os riscos associados a tal decisão superam os benefícios. Antes de abordar especificamente as particularidades do caso brasileiro, o artigo analisa o debate histórico sobre a legitimidade democrática de bancos centrais autônomos, especialmente após a crise financeira de 2008, que trouxe novos elementos à discussão.
A conclusão é que o debate sobre autonomia do BACEN chega ao Brasil no momento errado, já quando a separação entre política monetária e processo democrático é objeto de crítica mundialmente. A experiência mostra que bancos centrais autônomos se tornam independentes da vontade popular, mas não das instituições financeiras, e assim acabam servindo de instrumento para o aumento da desigualdade.
A Origem da Autonomia
A autonomia dos bancos centrais se baseia na justificativa de manutenção da inflação baixa, que exigiria que a política monetária fosse conduzida com credibilidade. Em tese, a autonomia evitaria que o governo aumentasse a oferta de dinheiro à sua conveniência para garantir ganho eleitoral, resultando em aumento da inflação, uma vez que as empresas reajustariam o preço das suas mercadorias e serviços sob a expectativa da subida dos índices inflacionários.
Na narrativa ortodoxa, a autonomia tornaria as autoridades monetárias menos suscetíveis à pressão política, o que, consequentemente, geraria estabilidade dos preços. Além disso, evitaria que os governos endividados tentassem usar a inflação para reduzir sua própria dívida (Rogoff, 2019, p. 12). A origem do modismo de bancos centrais autônomos é parcialmente creditada à experiência bem sucedida do Bundesbank alemão no controle da inflação. No entanto, estudos posteriores demonstraram que outros fatores desempenharam um papel importante no resultado alemão, tais como: (i) a percepção pública de que o combate à inflação era uma prioridade máxima, devido às lembranças pessoais da hiperinflação anterior à segunda guerra mundial (Berman e McNamara, 1999, p. 5) e (ii) o apoio dos sindicatos à autonomia como estratégia para negociação salarial (Hall e Franzese, 1998).
O fim do sistema de Bretton Woods durante a presidência de Nixon nos Estados Unidos é associado ao aumento do número de bancos centrais autônomos no mundo. Para seus defensores, isso se deve ao fato de que a maioria dos países trocou as taxas de câmbio fixas por taxas flutuantes, o que exigiria maior credibilidade das autoridades monetárias (Lijphart, 2012, p. 229). Por outro lado, a visão heterodoxa argumenta que a maior liberalização financeira dos anos 1970 impôs aos Estados nacionais a condição de garantidor da rentabilidade de ativos, com aumento da autonomia da política monetária e diminuição da discricionariedade fiscal por parte do governo (Lopreato, 2006).
Assim, apesar de amplamente adotada, os benefícios da autonomia são questionáveis. Não há evidências empíricas de que ter o Banco Central sujeito ao controle do poder executivo resulta em consequências econômicas negativas (Stasavage, 2003). Muito pelo contrário. Pesquisas mostram que ciclos eleitorais não influenciam as taxas de juros (Leertouwer e Maier, 2002; Maier, 2002).
Autonomia de Bancos Centrais e Legitimidade Democrática
O Banco Central como um poder não eleito gera mais controvérsia do que outras instituições não eleitas, como o Poder Judiciário e os militares. Há menos crença de que ele exercerá autorrestrição (Tucker, 2018, p. 24).
O processo pelo qual as decisões são tomadas são fundamentais para a democracia. Tratar a política monetária de forma diferente do que qualquer outra área de governo, como saúde, tributação, educação e tantas outras, é, no mínimo, suspeito. As decisões dos bancos centrais influenciam as taxas de desemprego e o crescimento da economia. É difícil defender que o cidadão comum, por meio do governante eleito, perca a possibilidade de influenciar os rumos da política monetária.
Bancos centrais autônomos excluem de decisões sobre política monetária consumidores e trabalhadores. Por elitizar o processo decisório, a autonomia acaba não sendo tão independente, neutra e apolítica quanto propagandeada. Leva à dificuldade de fiscalizar a captura regulatória por parte das instituições financeiras, que é reforçada pela porta giratória que existe entre o mercado privado e os bancos centrais, exemplificada por profissionais como Henrique Meirelles, Alan Greenspan e tantos outros que saíram da chefia dos respectivos bancos centrais diretamente para o mercado financeiro de onde vieram.
Na prática, a captura regulatória assegura que a política monetária não seja usada para fins distributivos. Uma política monetária conservadora, cujo principal objetivo é estabilidade dos preços, beneficia as elites poderosas em detrimento das classes mais baixas, que dependem de maior crescimento econômico e geração de empregos. O argumento da credibilidade esconde, essencialmente, um objetivo antidemocrático, baseado na garantia de que a política monetária permanecerá a mesma independentemente do resultado das eleições.
A crise econômica de 2008, que ameaçou o sistema capitalista mundial, reforçou a ideia de que bancos centrais autônomos diminuem a democracia. Os bancos foram forçados a assumir novos papéis, pois tornaram-se responsáveis por promover a segurança e a solidez do sistema financeiro. Determinam o nível das reservas internacionais, regulamentam provisões para perdas dos bancos privados, assumem controles de capital e a responsabilidade por políticas de concorrência e concentração bancária. Os poderes mais amplos do Federal Reserve americano permitiram que emprestasse mais de US$ 16 trilhões a juros baixos para instituições financeiras e comprasse cerca de US$ 3,5 trilhões em títulos ilíquidos por meio da política de Quantative Easing. A maior parte dessa oferta de dinheiro nunca chegou à economia real, deixando trabalhadores, estudantes e pequenas empresas enfrentando medidas de austeridade, enquanto os índices da bolsa subiam. Após 2008, a influência dos bancos centrais no dia a dia do indivíduo, definindo o valor do crédito imobiliário, influenciando preço de ações, de empréstimos estudantis e várias outras operações, se tornou ainda mais evidente. É certo impedir o eleitor de ter a escolha de alterar políticas monetárias que não estão funcionando para ele?
A autonomia se baseia no raciocínio de que os eleitores não sabem o que é melhor para eles, o que é extremamente difícil de aceitar nas democracias. A autonomia priorizará sempre a inflação baixa quando esta for confrontada com a opção do pleno emprego. Assim, tenderá a beneficiar apenas os indivíduos mais ricos com ativos investidos. No caso do Brasil, a opção é ainda mais evidente, pois o próprio PLP 19/2019 deixa isso claro ao estabelecer como objetivo fundamental do BACEN a estabilidade de preços e, como meta de hierarquia inferior, a fomentação do pleno emprego. Nesse sentido, o PLP 19/2019 é norma menos democrática que o Federal Reserve Act (FRA) americano, usualmente citado como sua fonte de inspiração, pois a Seção 2A do FRA determina que os objetivos de pleno emprego, estabilidade de preços e taxas de juros moderadas possuem a mesma hierarquia e devem ser usados para fins de promover o crescimento da economia e o aumento da produção, objetivos estes que beneficiariam também a população que não possui investimentos.
Por que o Brasil tem muito a perder com a autonomia do BACEN agora?
A história recente brasileira não justifica o risco institucional de criar a autonomia do BACEN neste momento.
Durante a ditadura militar de 1964 -1985 o mandato médio do presidente do BACEN foi de aproximadamente 2,5 anos. De 1985, quando José Sarney assumiu a presidência, até o final de 2002, quando Fernando Henrique Cardoso (FHC) deixou o cargo, o BACEN teve um número surpreendente de 16 presidentes diferentes. O prazo médio para cada um durante esta fase foi de um único ano. Naquela época, ainda antes da crise de 2008, seria possível entender o ponto de vista daqueles que argumentavam a favor da autonomia. Além das constantes trocas de comando, o uso eleitoral do BACEN era evidente, como ficou demonstrado pela manipulação cambial durante a campanha para a reeleição de FHC, seguida da forte desvalorização após a eleição.
Entretanto, a partir de 2003, com o governo Lula, os mandatos dos presidentes do BACEN têm sido muito mais longos e estáveis. Desde então, o BACEN teve apenas quatro presidentes diferentes, basicamente um para cada presidente brasileiro eleito: Presidente Lula e Henrique Meirelles; Presidenta Dilma e Alexandre Tombini; Presidente Temer e Ilan Goldfajn; Presidente Bolsonaro e Roberto Campos Neto. Em média, cada presidente do BACEN permaneceu no cargo por quatro anos e três meses. Mais até do que o mandato de quatro anos proposto para presidentes e diretores do BACEN pelo PLP 19/2019.
O Brasil discute a autonomia com algumas décadas de atraso, já após a crise de 2008 que reforçou os pontos negativos da autonomia em relação à legitimidade democrática. Tenta resolver um problema de credibilidade que não existe. A política monetária brasileira é extremamente estável, mesmo tendo passado por governos de ideologias opostas.
Embora o Brasil não tenha nada a ganhar com autonomia, certamente tem o que perder. O PLP 19/2019 determina que o Conselho Monetário Nacional (CMN) poderá propor o afastamento do presidente e diretores do BACEN caso não tenham um desempenho satisfatório, condicionada a votação por maioria absoluta no Senado. De acordo com o artigo 63 da recente Lei 13.844/19, o governo tem total controle do CMN. Assim, a substituição do presidente do BACEN será até possível se o governo tiver uma maioria no Senado ou for capaz de barganhar alianças para alcançar tal maioria. Isso significa que o BACEN não estará completamente isolado da pressão política, mas enquanto hoje seu presidente e diretores podem ser alterados de forma imediata, se a lei for aprovada o longo processo legislativo e a respectiva publicidade gerarão maior percepção de interferência, agravando o impacto negativo sobre a inflação e aumentando os riscos de crises monetárias.
Conclusão
O BACEN percorreu um longo caminho desde 2003 para ganhar credibilidade sem autonomia legal. A credibilidade pode ser mantida com transparência em relação às escolhas da política monetária, sem limitar a democracia. O debate no Congresso sobre autonomia do BACEN está ocorrendo no lugar errado, na hora errada. O Brasil não tem razão para reduzir a legitimidade democrática neste momento crucial da história, em que a desigualdade econômica e social se acentua. O que parece é que, seguindo o que ocorreu em outros países, a ameaça inflacionária está sendo usada como bode expiatório para forçar uma política monetária conservadora (Mosley, 2017) e ignorar evidências de que bancos centrais autônomos aumentam a desigualdade social e econômica (Canova, 2015, p. 676).
Por fim, uma curiosidade: apesar de no Brasil as vozes contra a autonomia do BACEN serem majoritariamente de pessoas do campo político da esquerda, cabe lembrar que até mesmo Margaret Thatcher era contra a independência dos bancos centrais. Suas razões não eram necessariamente técnicas, uma vez que justificava o posicionamento no receio de que a autonomia reduziria o medo eleitoral do povo de eleger governos de esquerda (Fernández-Albertos, 2015, p. 222). Em suma, a autonomia não prioriza necessariamente políticos de esquerda ou de direita, mas certamente beneficia o grupo de instituições financeiras e investidores de elite, um resultado extremamente negativo para o Brasil, líder mundial da desigualdade.
Referências
Berman, S., McNamara, K.R., 1999. Bank on Democracy: Why Central Banks Need Public Oversight. Foreign Aff. 78, 2–8. https://doi.org/10.2307/20049203
Canova, T.A., 2015. The Role of Central Banks in Global Austerity. Indiana J. Glob. Leg. Stud. 22, 665–695. https://doi.org/10.2979/indjglolegstu.22.2.665
Fernández-Albertos, J., 2015. The Politics of Central Bank Independence. Annu. Rev. Polit. Sci. 18, 217–237. https://doi.org/10.1146/annurev-polisci-071112-221121
Hall, P.A., Franzese, R.J., 1998. Mixed Signals: Central Bank Independence, Coordinated Wage Bargaining, and European Monetary Union. Int. Organ. 52, 505–535.
Leertouwer, E., Maier, P., 2002. International and Domestic Constraints on Political Business Cycles in OECD Economies: A Comment. Int. Organ. 56, 209–221.
Lijphart, A., 2012. Central Banks: Independence Versus Dependence, in: Patterns of Democracy. Yale University Press, pp. 226–238.
Lohmann, S., 1998. Federalism and Central Bank Independence: The Politics of German Monetary Policy, 1957-92. World Polit. 50, 401–446.
Lopreato, Francisco Luiz C. O papel da política fiscal: um exame da visão convencional. Campinas, IE/UNICAMP, Texto para Discussão n. 119, fev. 2006.
Maier, P., 2002. Rhetoric and Action: What Are Central Banks Doing before Elections? Public Choice 112, 235–258.
Mosley, L., 2017. Still Afraid of Footloose Finance? Exit and Voice in Contemporary Globalization (SSRN Scholarly Paper No. ID 3058317). Social Science Research Network, Rochester, NY.
Rogoff, K., Group of Thirty, 2019. Is this the beginning of the end of central bank independence?
Stasavage, D., 2003. Transparency, Democratic Accountability, and the Economic Consequences of Monetary Institutions. Am. J. Polit. Sci. 47, 389–402. https://doi.org/10.2307/3186104
Tucker, P., 2018. Introduction:: Power, Welfare, Incentives, Values, in: Unelected Power, The Quest for Legitimacy in Central Banking and the Regulatory State. Princeton University Press, pp. 1–24.