Maria Regina Paiva Duarte*
O sistema tributário de um país serve para prover recursos ao Estado para que este possa executar as políticas públicas e garantir a existência em sociedade. De um lado, a arrecadação, de outro, o gasto público. A forma como vão ser definidos, arrecadação e gasto, sempre será uma decisão política que terá efeito direto na distribuição de renda.
A despeito de toda a regressividade do sistema tributário nacional, que pesa mais sobre os mais pobres, pois incide muito mais sob a forma indireta, especialmente sobre o consumo, no ano de 2009 houve um efeito distributivo que compensou o efeito concentrador da arrecadação, conforme se verifica no artigo “Equidade Fiscal: Impactos Distributivos da Tributação e do Gasto Social no Brasil”, publicado em 2013 pelo Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo[1].
No artigo, foi analisada a dinâmica da progressividade/regressividade dos gastos em relação às rendas médias per capita familiar nas diferentes faixas de renda, de acordo com a intervenção do Estado, que podem ser vistas na Figura 1:
(i) renda original, que considera todos os rendimentos, exceto benefícios, recebidos pelo domicílio;
(ii) renda inicial, que considera a renda original somada aos benefícios;
(iii) renda disponível, que é aquela inicial menos os tributos diretos; e
iv) renda pós-tributação, que é a renda disponível menos os tributos indiretos.
Por último, quando for acrescentado o valor monetário dos benefícios-em-espécie, como saúde e educação públicas, chega-se à (v) renda final.
Tendo analisado o comportamento do Índice de Gini[2] nos níveis de renda, em especial a renda final, os autores afirmaram que “os avanços alcançados em 2009 devem-se, claramente, às política sociais, e não à mudança na estrutura tributária”.
Aliás, o sistema tributário nacional é tão regressivo que o Índice de Gini aumenta (aumenta a desigualdade da renda) após a incidência dos tributos e só volta a cair quando entram em cena os gastos com políticas de previdência e assistência social.
Passado o tempo, no entanto, as sucessivas perdas de arrecadação começaram a influenciar negativamente as políticas de distribuição de renda (no gasto) e, paralelamente, ganharam força campanhas como a do “Impostômetro”, que contabiliza os dias trabalhados para o pagamento dos tributos e divulga o dia em que, finalmente, estamos “livres” deste pagamento.
Mas o que se percebe é que nos últimos anos não houve modificação substancial no perfil tributário e a carga tributária, inclusive, já recuou para 33% do Produto Interno Bruto. O problema, então, não seria exatamente (e tão somente) em relação à carga tributária, mas sim na repartição do volume de recursos arrecadados. Como afirmaram os autores do artigo já referido anteriormente, “os resultados evidenciam que há um novo componente na política fiscal: a crescente importância do gasto social junto com um aprofundamento do perfil progressivo”.
Em meio à crise de receitas e ao momento político que atravessa o Brasil, foi aprovada a PEC do teto dos gastos, precarizou-se o trabalho e diminuíram-se os direitos trabalhistas e está em discussão a proposta de mais uma (contra) Reforma da Previdência para que o gasto público fosse diminuído. Em nome de uma política de austeridade, condenada inclusive por técnicos do Fundo Monetário Internacional (FMI), que afirmaram que essas políticas agravam as condições socioeconômicas e aumentam a desigualdade e a violência, o governo penaliza os trabalhadores e contribui para diminuir o potencial da economia, agravando a recessão.
Não bastasse, aumenta a tributação sobre combustíveis (CIDE), que tem efeito em cascata nos preços e é mais um tributo indireto a aumentar a regressividade do sistema e propõe aumentar alíquota do Imposto de Renda das Pessoas Físicas IRPF) sobre rendas acima de R$ 20.000,00. Ainda que o IRPF seja um tributo dos mais progressivos, pois incide diretamente sobre a renda de cada um, essa forma de aumentar tributos não é nem um pouco adequada, especialmente quando o mesmo governo concede benefícios e perdoa dívidas com programas de refinanciamento (REFIS) que desestimulam até as pessoas com as melhores intenções. Segundo os pesquisadores Sérgio Gobetti e Rodrigo Orair, no estudo “Progressividade Tributária: A Agenda Esquecida”, apresentado em 2015, “As simulações indicam que a pura e simples criação de alíquotas adicionais do IRPF, sem tributar dividendos, não atingiria os mesmos resultados em termos de progressividade e desigualdade, a menos que a carga tributária sobre a classe média assalariada fosse significativamente ampliada, o que aprofundaria em vez de amenizar a distorção em favor dos muito ricos”[3].
Existem medidas a serem consideradas antes de um aumento de alíquotas, de tributos e de REFIS sucessivos, como a cobrança da dívida ativa com a União, que já passou a cifra de um trilhão de reais, o efetivo combate à sonegação, a revisão de incentivos e benefícios fiscais. No próprio IRPF, se tributarmos lucros e dividendos distribuídos, o potencial de arrecadação ultrapassa os 40 bilhões de reais ao ano[4].
Todos sabemos que o sistema tributário brasileiro é complexo, que o cumprimento de todas as obrigações legais deixa muitas vezes pessoas físicas e jurídicas em situação complicada, que União e Estados não conseguiram, até hoje, se entender em relação aos tributos sobre consumo e que uma mudança radical seria inviável. Mas é preciso retomar, mais do que nunca, o caminho da justiça fiscal pelo lado da tributação e não apenas do gasto, como forma de contrapor o mantra da carga tributária excessiva e a impossibilidade de tributar mais os mais ricos, conferindo maior justiça fiscal e social.
[1] http://www.joserobertoafonso.com.br/equidade-fiscal-silveira-et-al/
[2] Indice de Gini – mede a desigualdade de distribuição de renda em um país e varia entre 0 e 1; quanto mais próximo de 1, maior a concentração de renda e a desigualdade neste país.
[3] http://www.esaf.fazenda.gov.br/backup/premios/premios-1/premios-2015/xx-premio-tesouro-nacional-2015-pagina-principal/monografias-premiadas-xx-premio-tesouro-nacional-2015/tema-3-sergio-gobetti-e-rodrigo-orair
[4] http://www.esaf.fazenda.gov.br/backup/premios/premios-1/premios-2015/xx-premio-tesouro-nacional-2015-pagina-principal/monografias-premiadas-xx-premio-tesouro-nacional-2015/tema-3-sergio-gobetti-e-rodrigo-orair
*Auditora-Fiscal da Receita Federal do Brasil e Diretora Administrativa do IJF