31/08/2020 – por Maria Regina Paiva Duarte*
Os tempos estão estranhos, de verdade. Mudanças no estilo de vida, nos comportamentos, até uma nova fronteira temos, a porta de nossas casas.
Curiosamente, porém, algumas situações resistem às mudanças que os novos tempos impõem. Por exemplo, acabar com o teto de gastos. Com a pandemia, ficou evidente a necessidade de ampliar gastos, mas há quem insista que precisamos rebaixar o piso para não afetar o teto de gastos. Mantido o teto, restrições valendo, a confiança volta e podemos esperar uma explosão de investimentos, novos empregos, tudo ótimo, não é?
Não, definitivamente, não. Não há geração de novos empregos, investimentos não aumentam. É preciso entender que o gasto do governo representa ganho no setor privado, estimula a economia. Ora, para que vamos aumentar produção se a demanda diminuiu e não há renda para comprar? O governo precisa gastar, e pode gastar. O recurso injetado reflete diretamente em aumento de arrecadação, inclusive.
Não houve uma “gastança” nos últimos anos, como vem sendo espalhado, gerando muita desinformação e mitos a esse respeito. Segundo o professor Róber I. Ávila, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), “Há um mito de que houve uma “gastança” nos governos petistas. Os fatos recentes no Brasil são bastante didáticos. A atividade econômica estava em desaceleração em 2014. Havia uma pressão do mercado financeiro e de atores políticos para que o governo efetuasse um ajuste fiscal. Isso foi implementado por Joaquim Levy em 2015, houve o maior corte de gastos desde que existe a Lei de Responsabilidade Fiscal. Seus defensores diziam que a redução do gasto melhoraria as contas públicas, por reduzir o déficit e traria crescimento econômico, pela melhoria das expectativas dos agentes e pela redução das taxas de juros. Concretamente, a austeridade fiscal contribuiu para o PIB se contrair 6,9% em dois anos”[1].
Insistir nas políticas de austeridade, cortar gastos ou mesmo não ampliá-los, como agora, e acreditar que as reformas serão solução é, no mínimo, um tremendo equívoco. As reformas trabalhista e previdenciária, mais recentemente, não deram a resposta alardeada pelo governo. Também não seriam os remédios para o desequilíbrio fiscal, causado principalmente por uma política macroeconômica baseada em elevadas taxas de juros nominais, regime cambial e regime de metas de resultado, que há muito prejudicam o Brasil[2].
Então, vem a pergunta: de que reformas precisamos? A Tributária, sem dúvida, é uma delas, porque uma nova ordem tributária, com mecanismos diferentes dos atuais, se faz necessária. Os instrumentos de que dispomos já não vinham dando conta de minimizar as desigualdades sociais, ao contrário, a tributação estava (e está) servindo para concentrar renda e não para distribuir renda[3].
Esta reforma, portanto, precisa ser colocada em perspectiva ampla, envolvendo questões de concepção de modelo tributário, de aspectos relativos ao federalismo fiscal, que incluíssem tributação ambiental, novos patamares de tributação da propriedade urbana e rural, heranças, impostos sobre consumo, questões federativas, etc. Mas o que precisamos agora é de uma abordagem emergencial, com medidas urgentes que possam mitigar as crises sanitária e econômica dos tempos atuais.
Tendo como base essa necessidade decorrente da pandemia, o Instituto Justiça Fiscal, juntamente com outras entidades[4], está lançando a campanha “Tributar os super-ricos para reconstruir o país”. As principais medidas propostas na campanha são:
- Corrigir as distorções no Imposto de Renda das Pessoas Físicas (IRPF)
- Implementar o Imposto Sobre Grandes Fortunas (IGF)
- Ampliar a Contribuição Social Sobre Lucro Líquido (CSLL) do setor bancário e extrativo
- Criar e Instituir a Contribuição Social Sobre Altas Rendas (CSAR)
- Modificar as regras do Imposto Transmissão Causa Mortis e Doações (ITCMD)
- Desonerar o Simples
- Novas regras de repartição com Estados e Municípios
- Medidas de revisão dos benefícios fiscais e de combate à sonegação fiscal
Nesta sintética abordagem das medidas propostas, foco na primeira, as correções no IRPF. Desde o final da década dos anos 80 e da década dos anos 90, começou no Brasil uma desoneração das altas rendas que transformou o país num paraíso fiscal para os ricos e inferno para os pobres[5]. O imposto de renda, que deveria ser o imposto progressivo, que deveria retirar mais dos mais ricos, foi “encolhido”, ainda que fosse estabelecido, na Constituição Federal (CF/1988), as premissas básicas de um Estado de Bem Estar Social, com princípios como o da isonomia, da progressividade e da capacidade contributiva. Este último, inclusive, fala por si, deve pagar mais quem tem mais.
Para diminuir a tributação sobre o capital, em 1995 foi estabelecida a isenção do Imposto de Renda sobre lucros e dividendos distribuídos a pessoas físicas, bem como criada uma figura ímpar chamada “Juros sobre Capital Próprio” (JCP). Acabar com essas duas medidas são correções que também precisam ser feitas, e agora é o momento mais que propício!
Alegam os defensores da isenção que o lucro já foi tributado na empresa, portanto não deveria ser tributado novamente na pessoa física. Primeiramente, cabe destacar que pessoas físicas (PF) e pessoas jurídicas (PJ) são entidades diferentes, os fatos geradores são distintos, não existindo, portanto, uma bitributação. Mais ou menos como se fôssemos no supermercado e, como já tivemos renda tributada, não haveria que recolher imposto nos produtos consumidos no estabelecimento.
O lucro da PJ é usado conforme o que determinam os estatutos da empresa e o imposto de renda pago será pelo seu resultado, pelo lucro auferido. Ainda que a alíquota nominal seja de 34% (25% IRPJ e 9% CSSL, empresas do lucro real), as deduções são muitas, o que reduz muito o lucro tributável. A distância entre o lucro contábil e o que deverá ser tributado pelo IRPJ, então, é consideravelmente elevada e se a empresa for tributada pelo lucro presumido, também haverá esse distanciamento. Sabemos ainda que os mecanismos de transferência de lucros para paraísos fiscais e planejamentos ficais abusivos são responsáveis diretos pela diminuição da tributação da PJ.
Ou seja, a alíquota nominal de 34% da PJ e que efetivamente não passa de 22%, não é capaz de justificar essa exótica isenção como se os 34% da PJ já tivessem embutidos os 27,5% da PF.
Ademais, se a PJ decidir distribuir lucros aos sócios, o rendimento será deste e, por um dos princípios estabelecidos na CF/1988, o da isonomia, deveria ser submetido à tabela do IRPF, como outras rendas do trabalho.
Com relação aos JCP, aí realmente temos outra distorção histórica, pois ele foi criado para reduzir o lucro na PJ e, consequentemente, diminuir o imposto de renda a pagar. As empresas mais beneficiadas são as mais capitalizadas, notadamente as instituições financeiras.
De outro lado, se o sócio recebe remuneração sobre o valor que supostamente empresta à empresa, deveria ser também submetido à tabela do IRPF e não ter uma tributação exclusiva na fonte com alíquota mais baixa, de 15%.
Podemos verificar, então que não é só a isenção na distribuição de lucros e dividendos que fere o princípio da isonomia, os JCP também.
Outra correção necessária é a da tabela do IRPF. Das sete alíquotas que havia em 1988, passamos a ter duas em 1989, um ano após a promulgação da CF/1988, ou seja, já estávamos abrindo mão de utilizar este tributo com progressividade mal estávamos começando a respirar ares democráticos e republicanos trazidos pela CF/1988.
Assim, estabelecer novas faixas de alíquotas, que atinjam as mais altas rendas de forma progressiva, é fundamental. A medida emergencial proposta estabelece alíquotas de 30, 40 e 45%, o que vai alcançar menos de um milhão de pessoas no Brasil. Segundo dados da Receita Federal, menos de 60 mil declarantes estariam na alíquota de 45%. Em compensação, nesta medida foi proposto aumentar o limite de isenção para três salários mínimos, o que isentaria mais de 11 milhões de pessoas.
Com essa nova tabela, em que as mais altas rendas vão pagar proporcionalmente mais, com alíquotas efetivas mais elevadas, o IRPF poderia tornar-se bastante progressivo, como vemos na figura[6]:
Se corrigidas estas distorções, os recursos vão aparecer e, juntamente com outras medidas, poderão ser financiados os gastos com a crise sanitária, pagos os valores de auxílio emergencial, bem como financiar muitas políticas públicas e investimentos no país. Apenas com as correções do IRPF, o potencial de arrecadação será de aproximadamente R$ 160 bilhões anuais[7].
Tributar os super-ricos, agora, esse é o caminho.
*Auditora-Fiscal da Receita Federal do Brasil aposentada e Presidenta do IJF
[1] Ver http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/578690-austeridade-a-maquina-estatal-de-produzir-desigualdades-entrevista-especial-com-rober-iturriet-avila
[2] Ver https://pedrorossi.org/e-mentira-que-o-brasil-vai-quebrar-se-nao-fizer-as-reformas-afirma-pedro-rossi/
[3] A propósito, ver estudo de Fernando Gaiger da Silveira em http://www.senado.gov.br/comissoes/cae/ap/AP20110524_Fernando_Gaiger.pdf
[4] Entidades parceiras na campanha: Auditores Fiscais pela Democracia – AFD, Associação dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil – ANFIP, Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital – FENAFISCO, Instituto Justiça Fiscal – IJF e Delegacias Sindicais do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil – SINDIFISCO NACIONAL – de Belo Horizonte, Brasília, Ceará, Curitiba, Florianópolis, Paraíba, Ribeirão Preto, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Salvador
[5] Ver Brasil: Inferno e Paraíso Fiscal, Attac Brasil e Unafisco Sindical, publicado em 2002
[6] Figura extraída da apresentação da campanha “Tributar os super-ricos para reconstruir o país”, disponível em https://ijf.org.br/tributar-os-super-ricos-para-reconstruir-o-pais/.
[7] Valores considerando dados de IRPF disponibilizados pela Receita Federal do Brasil referentes a 2018. O acréscimo pela tributação de lucros e dividendos na PF e reestruturação de alíquotas será de R$ 130 bilhões e o acréscimo pela tributação de aplicações financeiras e efeitos do fim da dedução de JCP na PF será de R$ 17 bilhões. Os demais valores serão provenientes de tributação de remessas de lucros ao exterior. Dados extraídos da apresentação da campanha “Tributar os super-ricos para reconstruir o país”, disponível em https://ijf.org.br/tributar-os-super-ricos-para-reconstruir-o-pais/.