As dívidas das famílias, os juros do Bacen e o CARF

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por Dão Real Pereira dos Santos

São Paulo (SP), 21/03/2023 – Centrais Sindicais protestam contra juros altos em frente ao prédio do Banco Central, na Avenida Paulista.
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Nos seis primeiros meses de 2022 as famílias brasileiras pagaram R$ 284,1 bilhões em juros e quase 78% das famílias estavam endividadas neste período. Esse valor superou os valores gastos pelas famílias com educação, com saúde e com vestuário. O setor financeiro captura, portanto, uma parte significativa de recursos necessários ao bem-estar e à própria dignidade das pessoas e, consequentemente, esteriliza recursos que poderiam ser essenciais para a atividade econômica. Afinal, os juros só servem para engordar os lucros dos banqueiros.

O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, que nunca escondeu sua opção política pelo bolsonarismo, insiste em manter a taxa de juros superior a 13%, 8% acima da inflação, colocando o Brasil na segunda maior taxa de juros do planeta, para a alegria dos banqueiros e contra a posição de toda a equipe econômica do governo, como se a política monetária pudesse atuar de forma independente da política econômica. Chamam isso de autonomia. Mas o correto seria chamar de sequestro, afinal, 18 anos de serviços prestados ao Santander certamente deve produzir laços muito sólidos de identificação e de lealdade aos interesses do setor financeiro.

Segundo o professor Ladislaw Dowbor[i], as três formas de sugar da população o resultado dos seus esforços são a não correção dos salários na proporção do aumento da produtividade, a redução de rendimentos indiretos pelo esvaziamento das políticas públicas e a elevação da taxa de juros que consome uma parte importante da renda dos trabalhadores. Além disso, as altas taxas de juros significam também uma forma de carrear os tributos dos mais pobres para alimentar os rendimentos dos mais ricos, via remuneração da dívida pública.  

Com a manutenção dos juros em níveis estratosféricos, os bancos ganham sempre. Parcelas significativas dos recursos do programa Bolsa-Família são transferidos dos beneficiários para o setor financeiro na forma de juros. A prova disso é que os lucros dos bancos crescem sempre, mesmo quando o crescimento do PIB é negativo. Em 2015 e 2016, o PIB teve queda de quase 8%, mas os bancos tiveram lucros elevados em quase 40% (DOWBOR, 2017). Em 2022, o lucro dos quatro principais bancos cresceu 6,3%, totalizando mais de R$ 95 bilhões.  

Por outro lado, os bancos são também grandes devedores de tributos e são deles os maiores valores que estão sendo discutidos no Conselho de Administração de Recursos Fiscais – CARF. Portanto, em relação ao endividamento das famílias e do governo, eles são credores, mas em relação às autuações tributárias, o credor é o Estado, ou seja, são as famílias e o governo.

Não é por acaso que eles são contra a retomada do voto de qualidade nos julgamentos do CARF, promovida pela Medida Provisória 1.160, de 12 de janeiro de 2023. Esse voto de qualidade existia antes de 2020, mas foi revogado pela Lei 13.988, no governo anterior, fazendo com que o simples empate no julgamento significasse o cancelamento definitivo da cobrança dos tributos, das multas e dos juros.

Importante esclarecer que as turmas de julgamento no CARF são formadas por 50% dos seus membros indicados pelas grandes corporações empresariais, dentre elas os bancos, e os outros 50%, por Auditores-Fiscais da Receita Federal. O voto de qualidade, que havia até 2020 e que foi retomado em 2023, é exercido pelo presidente das turmas sempre que ocorre empate nos julgamentos. Ressalta-se também que os autuados, mesmo quando perdem em todas as instâncias administrativas, sempre podem recorrer ao Poder Judiciário, já, para a Fazenda pública, essa possibilidade não existe.

Os cinco maiores bancos são responsáveis por cerca de R$ 95 bilhões de autuações sendo discutidas neste conselho. Os dados históricos revelam que os devedores do setor financeiro conseguiam ganhar cerca de 66% das decisões no CARF, mesmo antes de 2020, quando ainda havia o voto de qualidade. Nos casos em que perdem em todas as instâncias, o percentual de realização dos pagamentos é muito baixo. Em 2017, por exemplo, o setor financeiro pagou apenas 0,32% do valor total dos seus débitos fiscais (IJF/2022). Ou seja, os bancos são os maiores beneficiários dos juros que estrangulam as famílias brasileiras e a própria economia, bem como da dívida pública, mas, quando são eles os devedores, mesmo quando perdem em todas as instâncias, não pagam ou pagam de forma apenas residual.

A Associação Brasileira das Companhias Abertas – Abrasca, que congrega as maiores empresas brasileiras, inclusive os grandes bancos, manifestou-se publicamente contra o retorno do voto de qualidade no CARF, o que é compreensível, pois são exatamente as grandes companhias que mais se beneficiam do empate nos julgamentos administrativos. Eles dizem que a volta do voto de qualidade aumenta a insegurança jurídica, ou seja, segurança jurídica, para eles, só existe quando eles ganham.

Mais recentemente, a OAB, representando o interesse dessas grandes corporações do setor empresarial, inclusive dos bancos, propôs um acordo com o governo, como condição para aceitar a volta do voto de qualidade e retirar uma ação no STF contra a MP 1.160/2023, da qual, ela mesma era a autora. Pelo acordo, aparentemente aceito pelo governo, as decisões por voto de qualidade em favor da Fazenda pública implicarão o cancelamento de 100% das multas e, pasmem, também dos juros, desde que o pagamento ou o parcelamento se dê em até 90 dias.

Ou seja, os grandes empresários, dentre eles, os bancos, que enriquecem cobrando juros absurdos das famílias e pela manutenção dos juros em níveis alarmantes não querem pagar os juros quando são eles os devedores e forem derrotados em todas as discussões administrativas, caso a decisão final tenha sido resolvida por voto de qualidade. Esse é o melhor dos mundos, juros altos, quando são credores, juros zero, quando são devedores. 

Ora, o endividamento das famílias e do próprio governo são créditos dos bancos, mas as dívidas tributárias dos bancos são créditos das famílias e do governo. Se as famílias e o governo podem abdicar de cobrar os juros, os bancos deveriam fazer o mesmo. Assim, seria uma boa contrapartida para as negociações do acordo proposto pela OAB, que qualquer banco ou outra empresa qualquer que seja beneficiado pela exclusão dos juros, deveria promover o cancelamento dos juros relativos às dívidas de seus devedores, sejam eles, clientes, famílias ou o governo.

[i] DOWBOR, Ladislaw/2017 – A Era do Capital Improdutivo, 2ª Edição, Editora Outras Palavras

* Publicado originalmente na Coluna do Brasil de Fato RS.