Em 2011, quando o Plano Brasil Maior foi instituído, a desoneração da folha era uma medida temporária concedida a quatro setores: confecções, produção de calçados, móveis e software. Mas a medida foi sendo ampliada anualmente e, hoje, além de beneficiar 56 setores da economia, é permanente
15/01/2015
Por Leila Leal,
A Previdência Social está falida no Brasil”. Você certamente já ouviu frases como essa, que são comumente associadas a expressões como ‘rombo’ e ‘déficit’ para tratar da situação das políticas públicas que garantem benefícios como salários e pensões aos trabalhadores no país. Empresários, grande mídia e governo federal reproduzem esse discurso, que, como você verá, é contestado por muitos pesquisadores e militantes. Ao mesmo tempo, o governo federal vem, sobretudo nos últimos quatro anos, intensificado as medidas que diminuem consideravelmente a arrecadação dos impostos que financiam a área de Seguridade Social, composta pela Previdência, a Assistência Social e a Saúde. As iniciativas são apresentadas como formas de incentivar a indústria nacional, aumentar sua competitividade internacional, gerar empregos formais em diversos segmentos e aumentar a remuneração dos trabalhadores com carteira assinada, constituindo uma política de enfrentamento à crise econômica internacional que rejeitaria as “soluções clássicas” das economias capitalistas para momentos assim. Uma das principais modalidades dos chamados incentivos, a mudança da forma de contribuição dos empresários para a Previdência, significou só em 2013 uma perda de R$ 19,04 bilhões na arrecadação do setor, segundo dados da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip).
Mas, afinal, qual o sentido de se anunciar um rombo inexistente e, ao mesmo tempo, diminuir a receita da Previdência? De que forma as ditas medidas de incentivo vêm impactando a Seguridade Social e os direitos conquistados pelos trabalhadores? E os resultados em relação aos objetivos apresentados, são satisfatórios? Nesta reportagem, a Poli apresenta uma análise das políticas de incentivo ao setor privado no país através da redução ou renúncia ao pagamento de impostos. Pesquisas elaboradas pela Anfip e dados oficiais disponibilizados pela Receita Federal ajudam a entender o lugar de destaque que essas políticas ocupam no modelo de desenvolvimento brasileiro atualmente.
Os ministérios da Previdência Social, do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e da Fazenda, além da Receita Federal, procurados pela reportagem, não concederam entrevistas. Apesar da dificuldade com a publicização de uma avaliação geral das medidas pelos órgãos responsáveis, já durante o fechamento desta edição o vice-presidente da República, Michel Temer, sancionou a Lei 13.043/2014, que amplia vários desses benefícios e torna permanentes os que se encerrariam ao final deste ano, indicando que as desonerações seguem ocupando lugar prioritário nos planos do governo federal.
Custo Brasil?
“O país vai mobilizar suas forças produtivas para inovar, competir e crescer. O mercado grande e pujante, o poder de compras públicas criado pelas políticas inclusivas, a extensa fronteira de recursos energéticos a ser explorada, a força de trabalho jovem e criatividade empresarial constituem trunfos institucionais, de recursos naturais e sociais formidáveis para desenvolver um Brasil Maior”.
O trecho é da apresentação do Plano Brasil Maior, “a política industrial, tecnológica e de comércio exterior do governo federal”, publicada em site oficial. Também de acordo com seu site, o Plano Brasil Maior tem como desafios “sustentar o crescimento econômico inclusivo num contexto econômico adverso” e “[fazer o Brasil] sair da crise internacional em melhor posição do que entrou”.
Para atingir esses desafios, explica o texto, “o Plano adotará medidas importantes de desoneração dos investimentos e das exportações”, o que vem fazendo desde 2011, quando foi instituído através do Decreto 7.540. A descrição do Plano explica ainda que essas ações têm o objetivo principal de reduzir custos para a produção, acelerando o aumento da produtividade e garantindo às empresas brasileiras condições de competição internacional.
Através de uma série de Decretos e Medidas Provisórias, que foram paulatinamente convertidas em leis, o Plano se estruturou nesses quase quatro anos. Foram instituídas medidas como a redução do Imposto de Renda das empresas; a redução do Imposto sobre Produto Industrializado (IPI) para bens de investimento e de consumo; a devolução, aos empresários de setores exportadores, do valor pago em impostos como o Programa de Integração Social (PIS) e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), que incidem sobre o faturamento das empresas e compõem as receitas da Seguridade Social (através da criação do Regime Especial de Reintegração de Valores Tributários para as Empresas Exportadoras – Reintegra); a ampliação de regimes tributários com cargas reduzidas para empresas enquadradas como pequenas (como o Simples e o Microempreendedor Individual); a postergação do recolhimento de PIS e Cofins; e a desoneração da folha de pagamentos, medida citada na abertura desta matéria que modifica a forma de contribuição do empresariado à Previdência Social (passando de uma taxa de 20% sobre o total pago nas folhas de salários para uma taxa de 1% ou 2%, a depender do setor, sobre a receita bruta obtida no mês).
Em 2011, quando o Plano Brasil Maior foi instituído, a desoneração da folha era uma medida temporária concedida a quatro setores: confecções, produção de calçados, móveis e software. Mas a medida foi sendo ampliada anualmente e, hoje, além de beneficiar 56 setores da economia, é permanente, como determina a Lei 13.043, recentemente sancionada pela Presidência da República.
A ideia central, então, é que a diminuição dos custos com os impostos que financiam (direta ou indiretamente) os direitos dos trabalhadores seria a saída para tornar a economia brasileira mais competitiva no mercado internacional e estimular tanto a contratação de trabalhadores formais como o aumento do salário dos já empregados. O pressuposto dessa proposta, que já se tornou um chavão das entidades representativas do empresariado brasileiro, é o de que o custo do trabalho no país é muito alto. Por essa lógica, é justamente esse custo com a mão de obra (o chamado ‘Custo Brasil’) que torna a produção no país cara e, consequentemente, impede a concorrência com os produtos de outros países e desestimula os empresários a admitirem trabalhadores com vínculos formais. As desonerações, assim, destravariam esse gargalo e garantiriam resultados positivos para a competitividade da indústria, o crescimento econômico e o emprego formal no país.
No entanto, a ideia do ‘Custo Brasil’, base de toda a lógica explicitada acima, está longe de ser um consenso entre pesquisadores da área. Evilásio Salvador, economista e professor de Política Social na Universidade de Brasília (UnB), é um dos que critica essa perspectiva: “Os dois principais argumentos favoráveis às políticas de desonerações são mitos. O primeiro mito é o de que o custo da mão de obra no Brasil seria muito elevado, e que isso dificultaria a competitividade da indústria. Ao analisarmos o custo da mão de obra por hora na indústria brasileira percebemos que está entre os mais baixos do mundo”, defende. E completa: “O outro mito é a relação direta que se faz entre a diminuição de custos com mão de obra e a geração de empregos. Não há comprovação científica disso e nenhuma experiência internacional demonstra que necessariamente as empresas contratem mais por pagarem menos impostos sobre os salários. As empresas contratam mais à medida que tem mais demanda”, explica.
Frederico Melo, economista e técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), explica que a conta feita pelo empresariado ao apontar o elevado custo do trabalho no Brasil é equivocada: “De tanto que foi difundida, a ideia de que o gasto dos empresários com o pagamento de impostos representa mais de 100% daquilo que é pago aos trabalhadores na forma de salários se tornou senso comum. Mas isso é um mito, e a origem está na forma como se define o salário. Para nós, todo o dinheiro que sai da empresa e vai para o trabalhador individualmente é parte da remuneração do trabalho. Isso inclui salário mensal, o 13º salário, as férias remuneradas, o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, as horas extras e até as multas de FGTS quando o trabalhador é demitido. Quando se fala que custo é mais de 100% do salário, está se comparando apenas o salário mensal do trabalhador com as diversas outras verbas que ele recebe. Assim, todas as outras formas de remuneração entram na conta do custo do trabalho e o percentual aparece alto”, descreve. “Na verdade, as obrigações trabalhistas dos empregadores que não fazem parte do salário são os tributos que vão para fundos públicos financiar as políticas sociais ou para as entidades que compõem o Sistema S, somando um percentual de aproximadamente 25%. Então, o custo do trabalho não é alto: a remuneração no Brasil é muito baixa e esse percentual de tributos é relativamente baixo”, completa Frederico. Ele acredita que a redução do custo do trabalho pode trazer algum alívio relativo para a produção, mas muito pequeno e insuficiente para recompor competitividade da indústria nacional.
Objetivos declarados e implícitos: uma radiografia das desonerações
É esse questionamento que está na base de grande parte das críticas à política de desonerações, sustentando a ideia de que, na verdade, não se trata de corrigir um custo excessivo com a mão de obra, que é irreal, mas sim de potencializar lucros do empresariado. A partir dessa perspectiva, os objetivos apresentados da política de desonerações são questionados por pesquisadores. Ruy Braga, professor da Universidade de São Paulo (USP) e sociólogo do trabalho, diz que essas medidas precisam ser compreendidas em um contexto mais amplo e estão associadas a outras, como as parcerias público-privadas e a privatização de portos e aeroportos. São, para ele, concessões de benefícios ao setor privado a partir dos fundos públicos, que têm a função principal de ampliar a margem de lucro das empresas: “Desde 2011, o governo federal tem sistematicamente implementado uma série de medidas que beneficiam enormemente as empresas e ampliam as suas margens de lucro. São frentes abertas essencialmente para estimular capital e atender aos interesses das grandes corporações que atuam no Brasil”, analisa.
Exemplificando com a situação das empresas montadoras de automóveis, ele contrapõe à ideia de ‘Custo Brasil’ a noção de ‘Lucro Brasil’: “Não há custo elevado do trabalho no país. Nos últimos 12 anos, 94% do emprego formal criado paga até 1,5 salários mínimos. Isso dá U$400, exatamente o que se paga na China. O que existe de fato é o ‘Lucro Brasil’. As montadoras de automóveis sistematicamente faturam recordes de lucros no país e expatriam capital todos os anos. Isso mostra o quanto é falacioso o discurso das entidades patronais. Não há como dizer que custo do trabalho no Brasil é alto quando se tem setores internacionais faturando ‘como nunca antes na história desse país'”, defende. A avaliação é compartilhada por Evilásio Salvador, que diferencia os ‘objetivos declarados’ dos ‘objetivos implícitos’ das políticas de desoneração: “É um conjunto de medidas que têm o objetivo de socorrer o capital, afetado pela crise econômica de 2008. As medidas de desoneração não têm por objetivo as questões explicitamente declaradas. Implicitamente, trata-se de garantir a retomada da taxa de acumulação do capital, atingindo os níveis anteriores à crise”, diz.
Os dados mais atualizados disponibilizados pela Receita Federal (até o fechamento desta edição) incluem o levantamento da arrecadação e das desonerações tributárias até o mês de setembro, inclusive. De acordo com a Receita, em setembro a arrecadação total de tributos foi de R$90,77 bilhões e as desonerações somaram R$8,39 bilhões. As desonerações, assim, representaram 9,24% do que foi arrecadado. Em comparação com o mesmo mês do ano passado, o percentual das desonerações em relação à arrecadação total subiu: em setembro de 2013, foram R$84,21 bilhões de arrecadação e R$6,8 bilhões em desonerações, representando 8,07%. Os dados gerais de 2014 apontam que, de janeiro a setembro, foram arrecadados R$862,51 bilhões e o montante de desonerações chegou a R$75,69 bilhões. As desonerações atingiram, assim, 8,7% das arrecadações, registrando também um aumento em relação a 2013. De janeiro a setembro do ano passado, elas representaram 6,9% do que foi arrecadado (um total de R$806,44 bilhões para R$55,9 bilhões desonerados).
Os números contabilizados pela Receita, que totalizam R$77,8 bilhões em desonerações em 2013, levam em conta apenas os impactos dos incentivos instituídos desde 2010 e consideram, como desonerações, todas as isenções ou reduções de taxas de impostos, abatimentos, concessão de créditos tributários ou anistia em relação a valores devidos. Os valores gerais, portanto, são ainda maiores. Se levados em conta os benefícios já consolidados, instituídos antes de 2010, o montante do que se deixa de arrecadar pelas políticas de incentivo tributário pode representar mais do que o dobro dos valores divulgados pela Receita. É o caso do levantamento divulgado pelo Tribunal de Contas da União, que estimou um custo de pelo menos R$218 bilhões em 2013, considerando os benefícios tributários gerais e relacionados ao financiamento da previdência, sem levar em contra os créditos concedidos.
No bolo geral das desonerações, chama a atenção o crescimento da fatia concedida em relação aos impostos que financiam a Seguridade Social, como os já citados PIS e Cofins, a contribuição patronal previdenciária sobre folha de pagamento e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). É o que aponta Ana Carolina Cordilha, economista e autora do artigo ‘Desoneração da Folha de Pagamentos para Competitividade Espúria?’, publicado pela Anfip, que sintetiza alguns resultados de sua pesquisa de mestrado desenvolvida na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em entrevista à Poli, ela destaca: “Segundo estimativas com base no Ministério da Fazenda, em 2003, 13% do total de incentivos tributários concedidos ao setor privado vinha da renúncia ao Cofins, PIS-Pasep e CSLL, três das fontes principais de recursos da Seguridade. Hoje em dia, este percentual encontra-se na casados 40%”.
Entre esses benefícios concedidos em relação aos impostos que financiam a Seguridade Social, tem se destacado a desoneração da folha de pagamentos, descrita anteriormente. A mudança na forma da contribuição dos empresários à Previdência que, como você leu, começou em 2011 como uma medida temporária para quatro setores, foi sendo paulatinamente ampliada e, agora, com a recente aprovação da Lei 13.043, será definitiva para 56 ramos da economia, tem correspondido a uma parcela cada vez maior de renúncias fiscais pelo Estado. A estimativa da Receita Federal para a renúncia resultante desse benefício em 2013 foi de R$12,28 bilhões. Dados de outro relatório disponibilizado pela Receita ajudam a compreender o aumento de suas dimensões: no documento que cataloga as 21 modalidades de desonerações instituídas em 2014 e faz cálculos dos impactos de cada uma delas para os próximos anos, a desoneração da folha de pagamentos aparece respondendo, sozinha, por R$23,79 bilhões, em um total de R$34,8 bilhões que não serão arrecadados em 2015. As outras 20 modalidades, juntas, representarão um impacto de R$11,01 bilhões em renúncias, menos da metade do impacto da desoneração da folha. Para 2016, a receita estima que a substituição da contribuição previdenciária patronal sobre folha pela contribuição sobre receita bruta significará uma perda de R$27,38 bilhões no orçamento da Seguridade Social, diante de um total de R$41,02 bilhões desonerados. Em 2017, segundo o mesmo relatório, o total de perdas resultantes dessa modalidade será de R$31,65 milhões, para um total de R$46,59 que o Estado não arrecadará.
A Anfip, no entanto, defende que já no ano passado os impactos da desoneração da folha de pagamentos sobre a arrecadação previdenciária foram mais significativos do que o apontado pelos dados da Receita. Segundo o estudo detalhado feito pela entidade, ‘Desoneração da Folha de Pagamentos: Oportunidade ou Ameaça’, em 2013 o total que se deixou de arrecadar para a Previdência com a mudança na forma de contribuição patronal foi de R$19,04 bilhões. Vanderley Maçaneiro, vice-presidente de Assuntos Fiscais da entidade e organizador do estudo, explica que os dados foram obtidos a partir de um cálculo separado dos setores que pagam 1% e 2% de seu faturamento à Previdência e com base em dados de 2008 a 2011 devidamente corrigidos. Ele destaca que a principal preocupação da entidade é com o financiamento da Seguridade Social, e lembra que, de acordo com a Lei 12.546/2011, que instituiu a desoneração da folha, a União é responsável por compensar o Fundo do Regime Geral da Previdência Social no valor correspondente à estimativa de renúncia previdenciária decorrente da medida. “Mas, na prática, isso não foi resolvido.
A perda final para Previdência ficou em R$10 bilhões. Dos R$19,04 bilhões que deixaram de ser arrecadados, o Tesouro repassou apenas R$9,02 bilhões, desequilibrando as contas da Seguridade. São recursos que deixam de financiar a Previdência, a Assistência Social e a Saúde. Os números relativos a 2014 ainda não foram fechados, mas o impacto será ainda maior”, diz.
Impactos sobre os direitos e o orçamento da Seguridade Social
Diante de tantas reduções no financiamento, estaria então correta a tese de que a Previdência Social é deficitária? Pesquisadores ouvidos pela Poli apontam que não, mas entendem que as desonerações nos impostos que financiam a Seguridade podem acabar reforçando esse discurso e a noção de que esse direito ‘não se sustenta’ na economia atual. “A crescente expansão das renúncias à custa das contribuições sociais, e em especial o recente aumento de utilização do canal previdenciário, vem prejudicando o resultado final do sistema, embora este encontre-se inserido dentro de um orçamento ainda plenamente superavitário”, aponta Ana Carolina Cordilha. E ressalta o mecanismo que sustenta esse discurso: “É uma lógica perversa: os recursos são retirados da Previdência para conceder incentivos ao setor privado, provocam piora dos resultados e esta piora é utilizada como argumento para defender a insustentabilidade financeira do regime e consequente necessidade de reformas”, analisa a economista.
Vanderley Maçaneiro reforça essa análise, lembrando que a origem do discurso de que a Previdência brasileira seria deficitária está na realização de uma conta parcial e equivocada, que ignora as definições da Constituição Federal de 1988: “A Seguridade gerou, no ano passado, um superávit de R$ 76,2 bilhões. Ainda assim, há discursos inconsistentes que insistem em dizer que a Previdência é deficitária. Nossa Constituição Federal define que a Seguridade é composta pela Previdência, a Assistência Social e a Saúde e sustentada pelos tributos que financiam as aplicações nas três áreas. Mas, até hoje, se insiste na lógica de analisar a Previdência isoladamente, contabilizando apenas umas das fontes de financiamento – a contribuição previdenciária sobre folha – para todas as despesas com benefícios da Previdência. Assim, o resultado fica negativo. Quem faz esse cálculo não está bem intencionado, porque a Seguridade segue sendo superavitária. E a medida de desoneração da folha vem reforçar esses discursos, pois afeta a fonte de financiamento que é contabilizada”, diz.
Evilásio Salvador lembra que, além da desoneração da folha de pagamentos, todo o conjunto das desonerações dos últimos anos atinge o setor da Seguridade. Como você leu acima, tributos como PIS, Cofins e CSLL são destinados ao financiamento da Seguridade e têm sido bastante reduzidos. Segundo a Constituição, a Seguridade Social é financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta pelo pagamento desses impostos; pelas contribuições dos empregadores através da folha de salários, receita ou faturamento; pelos trabalhadores e segurados da Previdência diretamente, através de contribuições com bases nos salários; e pela receita de concursos como loterias e impostação de bens e serviços. É a fatia das contribuições patronais, seja pela folha de salários para a Previdência, seja pelos impostos sobre lucros (PIS, Cofins e CSLL), que vem sendo sistematicamente reduzida. “O volume de renúncia tributária já ultrapassa 4% do PIB, boa parte em tributos que incidem sobre financiamento da Seguridade. Apenas as contribuições sobre folha de pagamento correspondem, em média, a um percentual entre 20% a 24% do total do orçamento da Seguridade. Associando às perdas com PIS e Cofins, o impacto é muito significativo”, alerta o professor.
Ele completa: “Ainda há outras medidas, como desoneração do IPI da indústria automobilística, nos últimos anos, que impactam a Seguridade nos estados e municípios, porque há perda em seus fundos de participação no orçamento geral. Como há gastos mínimos previstos para esses entes federativos na saúde, por exemplo, a redução no IPI impacta a arrecadação da área”, explica. Evilásio destaca, ainda, o mecanismo da Desvinculação das Receitas da União (DRU) que, amparado pela Lei de Responsabilidade Fiscal, desvia 20% das receitas de contribuições sociais da Seguridade para o Sistema da Dívida Pública, para pagar os juros da dívida. “A DRU tira anualmente um valor que fica entre R$45 bilhões e R$ 50 bilhões da Seguridade Social. São sinais muito trocados, porque se anuncia um déficit inexistente e, ao mesmo tempo, os recursos de financiamento são sistematicamente reduzidos. Como previsto pela Constituição, quando há ausência de recursos próprios da Seguridade, os direitos por ela encampados precisam ser garantidos pelo Tesouro Nacional. Mas isso não seria necessário se o padrão de financiamento previsto pela própria Constituição fosse cumprido. É um mecanismo de fragilização do sistema, que acumula mais argumentos contra a Previdência e os direitos garantidos”, pondera.
É importante destacar que, a partir da Emenda Constitucional nº 20, de 1998, as contribuições sobre folha de pagamentos, que antes integravam o conjunto de fontes da Seguridade, passaram a ser consideradas contribuições diretamente previdenciárias, o que vedou sua utilização para fins distintos do pagamento de benefícios do Regime Geral da Previdência Social. Assim, a DRU incide nas fontes gerais da Seguridade, mas não sobre as contribuições previdenciárias sobre folha, que por esse motivo foram se destacando entre as arrecadações ano a ano. Com a desoneração da folha, essa fonte, até então ‘protegida’, é também fragilizada. O que segue intocada é a participação dos trabalhadores que, sem flexibilização ou desoneração, contribuem com percentuais de seus salários para a Previdência com descontos de 8% (para quem recebe até três salários mínimos), 9% (incidentes sobre salários de três a cinco mínimos) ou 11% (para quem recebe acima de cinco salários mínimos). Além da chamada ‘regressividade do sistema tributário’ brasileiro, que significa que os impostos gerais recaem com mais peso sobre os segmentos mais pobres da população, as sucessivas desonerações patronais e a rigidez com as contribuições dos trabalhadores indicam que o ônus do financiamento não está tão bem distribuído.
Ruy Braga identifica, aí, uma investida contra os direitos conquistados historicamente pelos trabalhadores: “A desoneração é, a rigor, uma política que prejudica o trabalhador, porque tem impacto sobre a sua própria previdência. Isso evidentemente não pode ser considerado ‘política pró-trabalho’. A justificativa do governo de que isso garantiria o emprego é uma alegação equivocada se pensarmos no médio e no longo prazo, porque teremos efeitos deletérios sobre a aposentadoria e os direitos trabalhistas”, analisa. E propõe: “O governo tem feito política econômica e concessões para empresas com a poupança do trabalhador, e isso é inaceitável. Precisamos de mais seguridade, alargar a base da garantia de direitos, e não diminuir. Isso não pode continuar assim, é uma ameaça ao futuro do mundo do trabalho no Brasil”.
Segundos dados da Anfip, publicados no estudo ‘Seguridade e Previdência Social – contribuições para um Brasil mais justo’, as renúncias de contribuições sociais (Cofins, PIS, CSLL e contribuições previdenciárias) que financiam a Seguridade Social tiveram uma evolução de 155,05% nos últimos cinco anos. O estudo aponta que as desonerações instituídas pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), complementadas pelas novas, devem alcançar 4,76% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2014. “Em particular, chama a atenção a imunidade concedida ao agronegócio exportador, o que aumenta a demanda de cobertura financeira do subsistema rural. Em 2005, essa renúncia foi da ordem de R$ 2,1 bilhões, sendo que, para 2014, o valor apresenta um crescimento de 119%”, revela a pesquisa.
E os resultados?
Diante do destaque assumido pela desoneração da folha de pagamentos entre as formas de incentivo ao setor privado e seu impacto crescente no financiamento da Previdência, afetando o conjunto da área da Seguridade, a Poli ouviu os pesquisadores, a Anfip e buscou avaliações recentes sobre os impactos dessas medidas em relação aos objetivos declarados do Plano Brasil Maior. Um dos primeiros elementos que chamam a atenção é justamente a escassez de dados e balanços oficiais que comprovem a eficácia das medidas, agora ampliadas. Vanderley Maçaneiro parte daí para apontar que a Anfip ainda não tem uma posição fechada quanto a essa avaliação de resultados. E explica as dificuldades técnicas para se fazer esse tipo de análise: “Em relação ao mérito dessa medida, ainda não temos uma posição tomada. É uma mudança recente e temos muita dificuldade de medir os verdadeiros efeitos. Em agosto de 2011, quando foi instituída, o dólar estava entre R$1,55 e R$1,56. Hoje, está em torno de R$2,40. Só essa mudança na valorização da moeda nacional gera impactos muito grandes na competitividade. Fica muito difícil medir o efeito da desoneração da folha separadamente”, aponta.
Já Fernando Gaiger, técnico do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e um dos autores do estudo ‘A desoneração da folha de pagamentos e sua relação com a formalidade do mercado de trabalho’, elaborado em 2008, acredita que as medidas tenham tido alguma importância na preservação do trabalho durante a crise. “Quando as primeiras desonerações foram implementadas, ainda havia um momento virtuoso no mercado de trabalho. Isso era na verdade uma medida de política industrial, a despeito dos argumentos estarem ligados à preservação de emprego e ao crescimento da formalidade. Os setores inicialmente desonerados eram aqueles que sofriam muito com concorrência internacional e a intenção era defendê-los. Depois que a economia começou a ter desempenho mais frágil, a desoneração com certeza deve ter tido efeito sobre o mercado de trabalho, pois se diminuiu o custo da mão de obra e com isso se preservou trabalho. O governo deu um tiro na política industrial, em um momento virtuoso, e acabou acertando na preservação do emprego no momento de baixa do ciclo”, opina. Mesmo acreditando nos benefícios da desoneração em relação ao emprego, Gaiger aponta limites nessa política: “Um dos grandes problemas é o câmbio. O segmento empresarial brasileiro é avesso ao risco. A desoneração não vai, por si só, resolver problemas”, aponta.
Clovis Scherer, economista e técnico do Dieese que estuda os efeitos da desoneração, também destaca a imprecisão nas análises mais recentes. Segundo ele, as avaliações mais consistentes são as relacionas aos efeitos das medidas nas contas públicas, para o que há mais dados disponíveis: “O problema maior é que anda não se tem uma avaliação precisa dos efeitos da desoneração em relação aos objetivos propostos. A teoria postula que a redução do custo de trabalho gera produção de mais empregos, um nível de produção mais elevado e um efeito de substituição: no processo de produção, se troca o insumo capital pelo insumo trabalho, porque o último está mais barato. Mas os problemas de competitividade se devem a vários fatores, então isso não significa um resultado imediato”, avalia. E completa: “Ainda estamos em um processo preocupante de perda de competitividade industrial. Se as medidas tiveram impactos, não foram fortes o suficiente para resolver a questão diante de fatores como o câmbio e a conjuntura do mercado internacional. Sobre o emprego, ainda não está divulgada avaliação sólida. Uma preocupação é que o efeito na formalidade não vá ser o desejado, porque há uma segmentação no mercado e a transição do setor informal para o formal não depende só do custo do trabalho”, diz.
A escassez de dados e avaliações oficiais também e questionada pela economista Ana Cordilha, que entende como problemática uma ampliação tão significativa das medidas sem um balanço mais concreto. “Não há evidências de que a política esteja sendo eficiente para atingir os objetivos propostos. A desoneração da folha foi expandida e tornada permanente sem nenhuma divulgação, por parte do governo, de estudos comprobatórios de seus resultados, muito embora coloquem em jogo bilhões de reais da Seguridade Social. Os dados de emprego e balança comercial parecem indicar comportamentos divergentes para os setores desonerados, o que já seria esperado, já que as desonerações atingiram atividades de variadas naturezas nos setores secundário e terciário, com diferentes graus de utilização de mão de obra e de exposição à concorrência internacional, sujeitas, portanto, a condicionantes muito diferentes”, pontua. Ela critica também o pressuposto de que a medida seria suficiente para superar os atuais problemas: “O próprio potencial de eficiência da desoneração da folha é muito limitado, pois emprego e competitividade são variáveis determinadas por um espectro muito mais complexo de fatores, muitos deles exercendo atualmente pressões adversas sobre a indústria – como duas décadas de câmbio sistematicamente sobrevalorizado, taxas de juros reais dentre as mais altas do mundo, baixos níveis de investimento em pesquisa e desenvolvimento, infraestrutura e sistema educacional deficitários e sistema tributário fortemente calcado em tributos incidentes sobre produção e consumo”, diz, lembrando que há estudos demonstrando que a indústria tradicional é alvo de somente 50% do custo total da renúncia e um terço do total de trabalhadores afetados pela política. “Isso evidencia como a política foi descaracterizada ao longo de sua implementação”.
Em julho, os economistas Alexandre Porse e Felipe Madruga, da Universidade Federal do Paraná, divulgaram uma pesquisa apontando que a desoneração de IPI para montadoras teve impacto muito abaixo do esperado, convertendo um aumento de apenas 0,02% no PIB ao ano e de 0,04% nas taxas de emprego. Neste mês, uma reportagem do jornal Valor Econômico apontou que as empresas favorecidas pela desoneração estão demitindo mais trabalhadores do que contratando. Segundo o jornal, que fez um cruzamento de dados da Receita Federal e do Ministério do Trabalho, em 2012 houve mais demissões que contratações em 12 setores beneficiados. Em 2013, afirma a reportagem, foram 13 setores, que juntos foram desonerados em R$1,91 bilhão. Em outubro, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, do Ministério do Trabalho, houve redução do emprego formal no país. O Brasil fechou o mês com menos 30 mil vagas com carteira assinada.
O presidente do Conselho Executivo da Anfip, Álvaro Sólon, aponta no artigo ‘Desoneração da Folha de Pagamentos desconstrói a Seguridade Social’ que a medida não pode ser considerada um mecanismo de geração de empregos. “A afirmação de que a desoneração vai aumentar o nível de emprego é contraditória (…). Pelo primado da teoria econômica, se sabe que para criar mais e melhores empregos em uma economia não basta desonerar a folha. É preciso, dentre outros, gerar um crescimento vigoroso e duradouro, aumento do consumo, investimento público casado com uma política fiscal eficiente, uma reforma tributária progressiva que possibilite melhorias na distribuição da riqueza. A experiência internacional não corrobora com os defensores da desoneração da folha de pagamentos. As evidências internacionais apenas reafirmam o que foi colocado, pois nos países onde a desoneração foi implantada não ocorreu incremento do mercado de trabalho (Chile, Argentina e Venezuela são bons exemplos)”, diz o texto.
Ruy Braga concorda que, sem investimentos, as questões de emprego e melhoria da economia nacional não serão resolvidas. “Se não houver investimento e crescimento econômico, não haverá aumento do emprego e desemprego vai fatalmente crescer, como ocorreu de 2012 para 2013. Os dados do IBGE são claros: há um aumento discreto, porém importante do desemprego no país. As medidas de desoneração da folha de pagamento ameaçam direitos e em troca não oferecem garantias efetivas de crescimento e emprego”, avalia. E finaliza, apontado a necessária superação do modelo de desenvolvimento atual para a garantia dos dos trabalhadores: “Temos um modelo de desenvolvimento incapaz de promover ganhos de produtividade. O pouquíssimo que temos de crescimento no país não está alicerçado em aumento do investimento no setor de manufatura, que incorpora os melhores empregos, mas sim em setores da mineração, da construção pesada, do agronegócio e outros que, ao invés de investirem em novas máquinas, tecnologia e inovações organizacionais, aumentam a extensão da exploração do trabalho, pressionam mais os trabalhadores, elevam mais as metas, intensificam ritmo sem contrapartida de intensificação dos salários, comprimem os salários, aumentam a taxa de rotatividade… Ou seja, tudo aquilo que deteriora as condições de consumo da força de trabalho no Brasil. Esse tipo de crescimento combina compressão salarial com um deterioração das condições de consumo da força de trabalho, atingindo sobretudo jovens que estão entrando no mercado. Se não houver investimento em máquinas, tecnologias, um novo ciclo de investimentos capaz de recuperar a manufatura complexa e redesenhar a relação do país com o mercado mundial, não termos efetivamente emprego ou garantias que estejam à altura da classe trabalhadora brasileira.”, critica.
Disponível em http://www.brasildefato.com.br/node/31017