por Dão Real Pereira dos Santos*
O presidente do Instituto Justiça Fiscal, Dão Real Pereira dos Santos, aponta que a medida reduz favorecimentos aos grandes devedores
“A inconformidade manifestada pelos setores mais ricos do empresariado e seus representantes é fácil de compreender: querem continuar utilizando-se de artifícios criativos para reduzir ou não pagar tributos, sem riscos. Esse é o principal motivo pelo qual a MP 1.160/2023 precisa ser apoiada e aprovada pelo Congresso Nacional.”
A reação imediata dos grandes empresários e dos advogados tributaristas contra a Medida Provisória 1.160/2023, em relação à volta do voto de qualidade no contencioso administrativo tributário, revela o acerto das medidas adotadas. Desde 2020, as decisões do CARF (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) que terminam empatadas passaram a ser decididas em favor dos autuados, pois foi extinta, pela Lei 13.988/2020, a figura do voto de qualidade, ou seja, o voto de minerva proferido pelo presidente da turma nesses casos. De fato, a extinção do voto de qualidade significou um enorme presente concedido às grandes corporações empresariais, habituadas a utilizar soluções criativas e sofisticadas para não pagar seus tributos devidos.
Para que fique claro o contexto, o CARF é o tribunal administrativo que julga, em segunda instância, as autuações realizadas pelos Auditores-Fiscais da Receita Federal, para cobrar tributos devidos e não pagos. O valor do estoque que está sendo discutido no CARF é de R$ 1,05 trilhão e o tempo médio de julgamento ultrapassa a 9 anos. Essas autuações são resultado de procedimentos de fiscalização que foram mantidas em julgamento colegiado em primeira instância.
Diferentemente do que ocorre nos demais países do mundo, esse tribunal administrativo é composto de forma paritária. A metade dos seus membros são Auditores-Fiscais e a outra metade são advogados indicados pelas grandes confederações empresariais. Isso mesmo, as grandes corporações têm seus representantes no órgão que vai julgar as suas dívidas tributárias. Importante ressaltar ainda que nesta representação de contribuintes, ou da sociedade, no órgão julgador, não constam os trabalhadores, os consumidores, nem mesmo, aqueles que teriam maior interesse na arrecadação dos tributos, os destinatários das políticas públicas.
Até 2020, os julgamentos que terminavam empatados eram decididos pelo voto do presidente da turma, cargo ocupado por um Auditor-Fiscal, e a decisão poderia ser favorável ao autuado ou à Fazenda Pública. O julgamento administrativo decidido contra a Fazenda tem caráter definitivo, ao contrário das decisões contra os autuados, pois estes sempre podem reiniciar toda a discussão na esfera judicial.
Estudo produzido pelo Instituto Justiça Fiscal[i] (IJF/2022) revela que, antes da extinção do voto de qualidade, nas decisões favoráveis à Fazenda, com valores superiores a R$ 300 milhões, 50% foram desempatadas pelo voto de qualidade e, na faixa de valores superiores a R$ 1 bilhão, esse percentual alcançou 75%.
A decisão pelo voto de qualidade, portanto, sempre foi muito mais importante nos julgamentos das maiores autuações, que correspondem aos grandes planejamentos tributários, e aqui está a principal razão do incômodo manifestado pelos grandes empresários em relação à MP 1.160/2023. A perda do voto de desempate produzida pelo Artigo 19 da Lei 13.988/2020, fez com que os planejamentos tributários abusivos e muitas outras matérias que já estavam pacificadas em favor da Fazenda passassem a ser revertidas em favor das grandes corporações empresariais, produzindo perdas anuais de receitas de aproximadamente R$ 70 bilhões.
A Medida Provisória 1.160/2023 está incomodando, portanto, os setores mais ricos, porque resgata o voto de qualidade do presidente das turmas de julgamento e faz retornar à situação anterior a 2020. Ou seja, os julgamentos que terminarem empatados voltarão a ser decididos pelo voto de qualidade do presidente, preservando-se o interesse público, sem prejuízo de recurso ao Poder Judiciário, por parte dos contribuintes.
Outra mudança extremamente positiva que consta nesta MP diz respeito à ampliação do limite de alçada para que os recursos sejam encaminhados ao CARF. Até a publicação da MP, os processos com valores inferiores a 60 salários-mínimos eram julgados em duas instâncias dentro da própria estrutura da Receita Federal. A Medida Provisória amplia este limite para 1.000 salários-mínimos. Assim, somente autuações de valor superior a R$ 1,3 milhão serão julgadas pelo CARF. Essa medida contribuirá para a redução do tempo médio de solução dos litígios, pois significa uma redução de mais de 70% no número de processos submetidos aquele Conselho, que correspondem a menos de 2% do valor total em litígio.
A inconformidade manifestada pelos setores mais ricos do empresariado e seus representantes é fácil de compreender, pois eles querem continuar se utilizando de artifícios criativos para reduzir ou não pagar tributos, sem riscos, e esse é o principal motivo pelo qual, a MP 1.160/2023 precisa ser apoiada e aprovada pelo Congresso Nacional.
Portanto, é fundamental que esse assunto esteja na pauta dos movimentos sociais, pois significa mais do que uma medida para evitar perda de arrecadação, mas sim uma medida que ajuda a enfrentar a regressividade estrutural do sistema tributário, pois a perda do voto de qualidade beneficia muito mais os mais ricos do que os mais pobres.
* Presidente do Instituto Justiça Fiscal (IJF)
[i] https://ijf.org.br/wp-content/uploads/2022/08/Estudo_Contencioso_Final.pdf