A verdade sobre os impostos. Quem realmente paga pelas distorções do Sistema Tributário. E quem deveria pagar mais. Por Samantha Maia, da Carta Capital.

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A verdade sobre os impostos. Quem realmente paga pelas distorções do Sistema Tributário. E quem deveria pagar mais

Quem alimenta o Leão

Ao onerar mais o consumo que a renda e a propriedade, o sistema tributário brasileiro pune os mais pobres e alivia a carga do topo da pirâmide social
por Samantha Maia

Daqui a mais ou menos seis meses, encerrada a Copa do Mundo, o Brasil mergulhará em uma nova campanha presidencial. Ainda não se sabe qual tema “novo” dominará os debates. Em 2010, o aborto consumiu um tempo precioso dos candidatos e, pior, esgotou a paciência do eleitorado, em desfavor de assuntos mais pertinentes. A “velha” agenda é, porém, fartamente conhecida. Tanto a candidata à reeleição, Dilma Rousseff, quanto os seus prováveis adversários, Aécio Neves e Eduardo Campos, vão prometer, antes de o galo cantar três vezes, uma série de reformas para melhorar a vida dos cidadãos. Entre elas não faltarão as propostas de reformulação do sistema tributário.

A mudança nos tributos é uma pauta antiga dos empresários e da chamada classe média. A carga de impostos de 36% do Produto Interno Bruto está bem acima da média dos países de economia semelhante à brasileira. O sistema é burocrático, confuso, pune quem deseja produzir, encarece os produtos nas gôndolas e não estimula a inovação. Em resumo, é anticompetitivo e atrasado. Segundo a consultoria Deloitte, as empresas de pequeno porte gastam 3,53% do seu faturamento somente para cuidar da complexa administração dos tributos.

Dito isso, o debate sobre o assunto tem servido muito mais a mistificações do que ao esclarecimento das ideias, embora não faltem informações a respeito (especialistas de distintas filiações ideológicas e diferentes nações produziram nos últimos anos diagnósticos interessantes sobre os impostos brasileiros). Os dados, em boa medida, contradizem as versões dominantes sobre onde realmente se localizam as distorções.

Um problema central, apontam os estudos, está no fato de a estrutura brasileira ser um fator determiante para o aprofundamento das diferenças regionais e da desigualdade social. O sistema onera fortemente o consumo e pouco a renda. Os tributos sobre o patrimônio, raramente lembrados nas discussões, são metade do cobrado nas nações desenvolvidas, segundo dados da insuspeita Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), clube dos países ricos. Na outra ponta, os impostos recolhidos em mercadorias e serviços alcançam 45% da carga total, um peso insuportável para quem se propõe a produzir. “Quanto menor o nível de renda de uma família, maior a destinação ao consumo.e maior a exposição à tributação mais alta.

Essa é a origem básica da regressividade”, resume a diretora da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, Maria Helena Zockun. A palavra regressividade significa que quem grita menos, a imensa maioria desinformada, é uma espécie de Atlas mitológico: carrega nas costas u m modelo iníquo e vilipendiado pela sonegação dos espertos e as manobras contábeis urdidas por advogados bem remunerados.

Os cidadãos que mais reclamam em geral são menos molestados pelo famoso Leão. O quadro à página ao lado é ilustrativo.

Enquanto um trabalhador que recebe salário mínimo deixa, ao consumir, 37% de sua renda nos cofres do governo, quem aufere 22 mil mensais desembolsa apenas 17%, de acordo com o seu padrão de gastos.

Nem se fale da porção superior da pirâmide social, o nosso 1%. O Brasil, em comparação à maioria dos países e em especial às nações desenvolvidas, além de tributar mal o patrimônio, como já exposto, também cobra poucos impostos sobre a renda e praticamente nada quando se trata da transmissão de herança. A maior alíquota do Imposto de Renda é de 27,5%, ante 55,9% nos Estados Unidos, para citar a meca do livre-mercado. Mesmo assim, trata-se de um dado meramente estatístico: ninguém paga 27,5% de IR. Com os descontos por faixa de renda válidos a todos os contribuintes e as deduções permitidas (os gastos com escola, saúde e previdência privada podem ser em parte descontados), um indivíduo com salário de 22 mil por mês consegue derrubar a alíquota total sobre os seus ganhos para 17%. Na média, o percentual efetivo no Brasil não ultrapassa 10% da renda.

Outro comparativo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe expõe o resultado dessa distorção. Por si só, o sistema brasileiro, entre a arrecadação e a distribuição dos recursos, reduz em meros 3,6% a desigualdade de renda, um pouco abaixo da média medíocre da América Latina (3,8%), subcontinente campeão das disparidades sociais. Entre 15 países da União Europeia, o Fisco é responsável por uma redistribuição média de 32,6%. Na Dinamarca, o índice alcança 40,8%.

Alguém dirá: o Estado não oferece serviços à altura dos impostos pagos anualmente pela sociedade. E fato, em parte. A saída estaria, portanto, em uma redução radical da carga tributária, certo? Não, diz o economista José Roberto Afonso, pesquisador do Ibre. “O desafio não é reduzir a carga, mas melhorar a sua qualidade, com a diminuição dos impostos indiretos, perversos, e o aumento dos diretos, mais justos.”

Nos últimos anos, Afonso tem se dedicado ao tema dos impostos e produz estudos fundamentais para entender as iniquidades e ineficiências do sistema no Brasil. Antes que algum liberal o acuse de sofrer a doença “do estatismo ou do comunismo”, seria bom lembrar sua trajetória. O economista é historicamente ligado ao PSDB e, em especial, ao ex-tudo-menos-aquilo-que-ele-realmente-gostaria-de-ser José Serra.

Afonso faz uma ressalva ao impostômetro, o festejado medidor da Associação Comercial de São Paulo que atualiza a cada segundo o total de tributos pagos no País. Segundo ele, o valor global pouco explica a estrutura perversa das cobranças. O 1,7 trilhão de reais indicado no painel como o total no ano passado esconde uma informação reveladora: quem recebe acima de 30 salários mínimos precisou trabalhar três meses a menos para pagar o seu quinhão do que um cidadão da base da pirâmide social. “Ninguém está incomodado, pois os mais prejudicados não têm voz, e os outros ficam quietos. O debate não ganhou densidade, é um tema árido, os mais pobres nem percebem que pagam imposto, e fica por isso mesmo”, diz Zockun.

QUEM GANHA ACIMA DE 30 SALÁRIOS PRECISA TRABALHAR TRÊS MESES A MENOS NO ANO PARA PAGAR TRIBUTOS DO QUE QUEM VIVE COM O MÍNIMO

Embutidos nos preços, os impostos indiretos (ICMS, ISS,IPI,PIS e Cofins) passam praticamente despercebidos, apesar de seu enorme peso na arrecadação. A soma das alíquotas é, em média, de 68%, ante 16% na média do máximo taxado em 31 países que adotam tributos semelhantes, segundo levantamento da Fipe. Desde junho de 2013, uma lei exige a decomposição, na nota fiscal, dos impostos, uma forma de o comprador ter a exata noção de quanto paga ao adquirir um produto ou serviço. Os comerciantes reclamam, porém, da dificuldade em fazer o detalhamento, dada a complexidade do sistema tributário.

“Saber o quanto se paga na aquisição de um bem poderia provocar uma pressão da sociedade por uma reforma tributária, mas não há solução fácil”, diz Clemente Ganz Lúcio, diretor do Dieese. Um primeiro passo, diz Zockun, teria sido aprovar, no Senado, uma proposta de 2008 que previa o estabelecimento de um imposto único nacional sobre valor agregado, aos moldes do IVA europeu. “O projeto não avançava sobre a regressividade, mas, ao simplificar o sistema e mostrar o imposto nas notas fiscais, surgiria alguma reação de baixo”, acredita a pesquisadora. A ideia não avançou pela pressão dos governadores, contrários a reduzir o ICMS, a principal fonte de arrecadação das administrações estaduais. As alíquotas de ICMS são particularmente altas em serviços essenciais: luz elétrica e telecomunicações.

O ISS também tem ganho importância nos orçamentos municipais, em mais um movimento de aumento da desigualdade, ao encarecer tarifas de ônibus, cabeleireiros e oficinas mecânicas. Enquanto isso, o IPTU, o imposto sobre propriedades urbanas que pode ter alíquotas diferenciadas por faixa de renda, perdeu participação na arrecadação. Em 93% das cidades, o valor recolhido com o imposto fica abaixo do IPVA, cobrado dos veículos. Pior: segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, as falhas no sistema de avaliação do valor do imóvel tornaram o IPTU regressivo, ou seja, proprietários de imóveis mais caros pagam proporcionalmente menos imposto. “O IPTU é um imposto mais justo, mas tem uma alta rejeição por falta de conhecimento de quem paga, de quem não paga e, principalmente, por não haver transparência dos governos em relação à aplicação dos recursos”, diz Afonso.

São Paulo é o principal campo dessa guerra. O prefeito petista Fernando Haddad foi proibido pela Justiça de aumentar o IPTU. Antes da interferência do Judiciário, Haddad havia, porém, perdido a batalha da comunicação: até aqueles que desembolsariam menos e os isentos da taxa se declararam contra as mudanças na cobrança.

O caso brasileiro de tributar pouco a propriedade é peculiar, afirma Afonso. “Nos EUA, existe um sistema de educação vinculado ao pagamento do IPTU e é comum uma família escolher morarem um distrito por conta da escola pública. E o tipo de lição para a qual o Brasil deveria olhar.”

Na mesma linha, o País quase não arrecada de propriedades rurais. A arrecadação do ITR corresponde a 0,01% do PI B e, provavelmente, mal cobre os custos de seu lançamento. A falha, diz o economista Ladislau Dowbor, estimula a concentração e a improdutividade. “Não temos retorno dos grandes investimentos em terra. E possível ficar sem produzir, pois ela não custa ao proprietário.”

O imposto sobre herança também é irrisório. Em meio a tantos discursos infiados em defesa da meritocracia, o Brasil permite a herdeiros usufruir, sem a necessidade de algum esforço próprio, com as riquezas construídas pelos pais. Nos Estados Unidos, a doação de fortunas para fundações é estimulada pelo fato de a transferência da herança ser tributada em até 50%. No Brasil, a alíquota mais alta é de 8%. “Claro que existe uma margem de isenção, mas ninguém acusa os Estados Unidos de serem contra a propriedade por tributar dessa forma”, diz Claudio Hamilton dos Santos, diretor do Ipea.

A AVALIAÇÃO FALHA DO VALOR DOS IMÓVEIS PERMITE AOS PROPRIETÁRIOS PAGAR CADA VEZ MENOS TRIBUTOS

A tributação sobre a renda representa apenas 19% da carga brasileira. O Sindifisco encabeça uma campanha pelo reajuste da tabela do IR, cuja defasagem é de 66% e leva os salários mais baixos a pagarem cada vez mais. Outros grupos defendem a inclusão de alíquotas maiores para chegar a patamares mais elevados de ganhos, além da taxação de grandes fortunas. Mas a pouca representatividade do IR no total da carga, avalia Zockun, em nada seria afetado se mantidas as permissões para descontos. “A tributação direta acaba pequena para qualquer nível de renda, pois as deduções fazem com que a tributação efetiva seja muito menor.”

Para alcançar as camadas mais altas de renda, explica Afonso, o foco precisa sair do imposto sobre pessoa física e ir para a jurídica, onde existe uma alíquota geral de 15%. Como forma de reduzir o custo do trabalho, o Brasil estimulou certas categorias profissionais e funcionários de altos salários das empresas a se tornarem “empresas”. Por extensão, permitiu-se a muitos deles ingressar no Simples, um sistema de recolhimento que reduz o porcentual de pagamento. “O aumento das alíquotas sobre pessoas físicas vai atingir apenas o funcionalismo público, não os profissionais liberais, jogadores de futebol, artistas.” E por que é tão difícil mudar? “Sabemos onde mexer, mas o financiamento da política por parte de quem quer manter o sistema como está trava a discussão”, diz Dowbor.

Sem grandes esforços para mexer nos impostos, a distribuição de renda recente foi obtida, segundo o Ipea, a partir do aumento dos gastos sociais, a exemplo do Bolsa Família. “O governo federal conseguiu efeitos distributivos por meio dos gastos, não dos tributos. Há o risco de o discurso anti-imposto se voltar contra os ganhos dos investimentos, o que representaria um dano ainda maior”, diz Fernando Gaiger, pesquisador do instituto.

Além de ser o grupo que deixa a maior parte dos seus rendimentos com o Leão, a população de baixa renda é aquela que tem mais a perder na hipótese de redução dos impostos. Segundo o Ipea, em uma carga tributária de 36% do PIB, 15 pontos porcentuais são redistribuídos à população por meio de serviços públicos. “Se quisermos uma educação melhor, vamos precisar de mais professores, e a verdade é que ainda faltam recursos para investir. Os serviços são mais baratos quando coletivos, mas, se a elite consegue fazer seu mundo à parte, ela não se preocupa com isso”, diz Dowbor.

Há um claro limite para a expansão dos efeitos de distribuição de renda via aumento de gastos. Se quiser um dia se tornar um país mais justo, o Brasil terá de inverter a lógica: cobrar de quem, de fato, pode custear o esforço rumo à civilização. Seria uma revolução.


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