BG: Creative Commons – Imagem: Reprodução / Forbes – Montagem: Gabriel Pedroza / Justificando
Por Arthur Harder Reis
Ao mesmo tempo em que a pandemia agravou a desigualdade, com pobres ficando mais pobres e os “ricos, podres de ricos” ficando cada vez mais ricos, o questionamento justamente sobre essa desigualdade parecia encontrar a terra mais fértil para florescer. No entanto, a discussão parece ter se limitado aos mesmos espaços em que já estava restrita antes. Surge, portanto, a simples pergunta: como isso é possível? Eis o norte da presente entrevista, com Antonio Cattani, referência na área de estudos sobre riqueza, desigualdade e afins, que logo segue.
Cattani em entrevistas recentes têm abordado alguns outros temas importantes, como “A síndrome do mal”, título de seu mais recente livro, e a questão da riqueza em seus vários desdobramentos. Se esses temas já estão ali disponíveis ao leitor interessado, cabe questionar o sociólogo a respeito de um conceito importante de sua obra, os “sofismas da riqueza” , em especial articulando como esse tem servido nesses tempos para isentar do escrutínio público os questionamentos sobre a legitimidade da desigualdade abissal que, como apontam diversos estudos, se intensifica.
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Justificando: Cattani, o que são os “sofismas da riqueza”?
Cattani: Esse é título de um capítulo do livro A sociedade justa e seus inimigos no qual sintetizo análises apresentadas numa obra mais abrangente intitulada, A riqueza desmistificada . Sofisma é um argumento ou um raciocínio falso, mas com aparência de verdade. A riqueza e, especialmente, a riqueza concentrada, é protegida e mistificada por vários sofismas. Entre eles, é que ela é sempre fruto do mérito, do esforço pessoal ou, em alguns casos, de um talento fora do comum. Isso raramente é verdade. A riqueza concentrada provém da exploração do trabalho de muitos, de privilégios fiscais e tributários, de favores do Estado, do rentismo parasitário e, de forma crescente, de heranças.
Outro sofisma associado a essa interpretação é que a riqueza concentrada é produzida na esfera do livre mercado concorrencial sendo, portando, igualmente legítima e merecida. Façamos a comparação entre uma pequena empresa local contando com a capacidade gerencial do seu dono e de alguns técnicos e uma mega empresa internacional empregando centenas de engenheiros, cientistas, advogados, lobistas etc. além de ser respaldada por poderosos bancos. A segunda tem capacidade de gerar lucros infinitamente maiores que a primeira. A mega corporação sonega tranquilamente impostos transferindo recursos para paraísos fiscais (mais precisamente, para esconderijos fisco-criminais), enquanto a segunda nem se atreve a fraudar o fisco e tem sua sobrevivência financeira periclitante. As grandes empresas monopolísticas são arautos do livre mercado e, ao mesmo tempo, as primeiras a burlar as regras da livre concorrência. Os milionários propagam que todos são iguais perante a lei, que o mercado retribui corretamente o esforço, que a carga tributária é elevada (logo eles que são adeptos do incivismo fiscal). O pequeno proprietário acredita ingenuamente na máxima “trabalho como posso, ganho o que mereço”. Esses sofismas parecem prover do senso comum quando, de fato, são produtos de centenas de anos de dominação ideológica dos poderosos.
J: Como enxergas o aumento da desigualdade, que já era abissal, durante a pandemia? Qual o papel dos “sofismas” nesse momento?
C: Como para outras situações políticas e econômicas, a pandemia apenas acentuou o que vinha acontecendo nas últimas quatro décadas. Desde o início dos anos 1980, com a crescente internacionalização econômica, com a diminuição da capacidade regulatória do Estado e com o enfraquecimento dos sindicatos, observa-se no mundo inteiro o aumento da riqueza individual. Mas é importante salientar: não para todos, apenas para um número proporcionalmente cada vez menor de fortunas pessoais. Com base em estatísticas internacionais, Branko Milanovic, um importante economista que trabalhou no Banco Mundial demonstra que nunca na história da humanidade indivíduos conseguiram acumular fortunas com tamanha importância econômica e política. Jeff Bezos (Amazon), Mark Zuckerberg (Facebook), Larry Page e Sergey Brin (Google), Elon Musk (Tesla) são poderosos não apenas por serem detentores fortunas de dezenas de bilhões de dólares, mas, também, por terem capacidade de alterar resultados eleitorais ao seu favor, de promover golpes de estado, de destruir a concorrência, permanecendo, em todos os casos, impunes e… cada vez mais ricos. Ganhavam em demasia antes da pandemia, continuam se beneficiando com ela. Voltando aos sofismas. Um deles atribui à riqueza virtudes indevidas especialmente no caso da filantropia. Por exemplo, o milionário X está promovendo pesquisas para combater a malária na África, o bilionário Y promove a cultura popular, o multibilionário Y financia ongs ambientalistas. Esses são os fatos divulgados na grande imprensa. Na verdade, X e Z fazem caridade com o dinheiro alheio pois descontam do imposto de renda suas contribuições sociais. Y é o proprietário de minas de extração de minério e de fazendas responsáveis por devastações ambientais gravíssimas.
J: “A carta do grupo Patriotic Millionaires and Human Act, que reúne mais de 120 milionários e bilionários de 8 países, afirma que ‘existem dois tipos de pessoas ricas no mundo: aquelas que preferem impostos e aquelas que preferem a revolta popular. Nós que assinamos [esta carta] preferimos impostos’”. Esse trecho retirado de uma notícia publicada pela Oxfam, que informa sobre uma carta assinada por milionários e bilionários e apresentada em Davos, indica certo “medo” de parte do grande capital com as possíveis consequências da relação entre pandemia e intensificação da desigualdade?
C:Essa pergunta me permite continuar o raciocínio anterior. Para que a iniciativa desse grupo não seja apenas retórica, ela precisa ser traduzida em atos: apoio aos partidos que promovem a justiça social, apoio a legislações tributárias conforme a capacidade contributiva etc. Ora, o que acontece é exatamente o contrário. No ambiente aveludado de Davos, os multibilionários lançam propostas “politicamente corretas” (eufemismo para marketing demagógico). Administrando suas fortunas combatem os sindicatos, financiam partidos conservadores e a mídia reacionária. Mais importante ainda, para eles, as revoltas populares são preocupantes, mas, em caso de necessidade, evitadas com os recursos que eles destinam aos aparatos repressivos.
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Entrevista concedida por Antonio David Cattani, via e-mail, para Arthur Harder Reis em 12 de novembro de 2020.
Quem é Antonio David Cattani
Doutor pela Université de Paris I – Panthéon-Sorbonne (1980), com pós-doutorado na École de Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris, 1993-1994).
é atambém Professor titular de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e no Programa de Pós-Graduação em Sociologia, pesquisador 1A do CNPq, Pesquisador-visitante na Universidade de Oxford (2010-2011) e Professor-visitante da Universidade de Bologna (2018-2019).
É autor de inúmeros livros e artigos sobre o tema.
Arthur Harder Reis é graduando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul