Claudia Fleig Mayer*
1. Princípios:
Os “princípios” são a base do ordenamento jurídico, os parâmetros para a construção e aplicação de normas. Devem ser considerados em conjunto, de modo a se sustentarem mutuamente. A Constituição Brasileira lista os princípios fundamentais, incluindo os aplicáveis ao sistema tributário.
O princípio da igualdade se aplica a toda matéria de Direito. É a proibição de tratamento desigual, a menos que existam fortes razões objetivas. Em termos tributários, “todos são iguais perante a lei” proíbe tratamento fiscal desigual a indivíduos de mesma condição, o que não impede de se levar em conta as desigualdades. Conforme Rui Barbosa, “tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. ”
O princípio da igualdade deve ser observado em conjunto com o princípio da capacidade contributiva, que define tratamento igual para iguais e também tratamento desigual para desiguais. É a medição da riqueza individual para graduar o ônus tributário, visando o bem comum. Também limita o alcance da tributação, excluindo os desprovidos de poder econômico. Deve pagar tributos quem detém riqueza, com tratamento igualitário na medida da igualdade da riqueza. Por outro lado, não se pode impor tributação excessiva, retirando do indivíduo a capacidade de contribuir – aqui entra o princípio do não confisco.
O princípio da progressividade é uma orientação geral sobre as normas tributárias, com elevação gradual de tributos por critérios estabelecidos em lei. Não pode ser confundida com proporcionalidade, que pressupõe alíquota única. A meta é fazer com que os mais ricos paguem, proporcionalmente, mais do que os mais pobres. Pode-se dizer que a progressividade é instrumento para a aplicação simultânea dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva.
2. Distribuição da carga tributária:
A carga tributária nacional se concentra em poucas fontes de receita, predominantemente bens de consumo. A tabela abaixo, feita pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, refere-se a 2010 e foi estratificada por base de incidência.
A arrecadação global representou 34,19% do PIB nacional. O item “mercadorias, serviços e bens” respondeu por 44,98% do total da tributação. Tributos indiretos sobre bens e serviços fazem com que todos paguem o mesmo, independentemente da quantidade de riqueza. A proporcionalidade faz com que o peso dos impostos indiretos seja mais alto para quem tem menor renda, o que é ruim para o ambiente socioeconômico e uma afronta ao princípio da progressividade. São considerados regressivos, já que oneram mais os indivíduos com menos riqueza.
A tributação referente a rendas e ganhos respondeu por 18,63% do total arrecadado, enquanto a tributação sobre o patrimônio representou 3,56%. Os sistemas tributários mais avançados, típicos de países desenvolvidos, mantêm estrutura tributária distinta: baixa carga sobre o consumo compensada por tributação elevada sobre renda e patrimônio. Até mesmo os Estados Unidos, país símbolo do liberalismo econômico, tem quase 50% de sua arrecadação com base na renda e mais de 11% com base no patrimônio.
3. Renúncias fiscais:
O imposto sobre a renda da pessoa física, em teoria, tem natureza progressiva. Mas ao se avaliar as distorções, como número reduzido de alíquotas, falta de atualização monetária do limite de isenção e renúncias fiscais, são encontrados aspectos ocultos de natureza regressiva.
Um exemplo é a isenção de Imposto de Renda sobre proventos de aposentadoria para portadores de moléstia grave, que aparentemente oferece tratamento igualitário para quem sofre de certas doenças. Os países que oferecem renúncia fiscal relacionada a doenças costumam condicionar a renúncia à comprovação de despesas médicas efetuadas, não na mera existência da doença em si. Considerando-se que um brasileiro de alta renda geralmente tem plano de saúde, na maioria das vezes o tratamento não implica em despesa adicional. Na forma da Lei nº 7.713/88, a doença do juiz vale mais do que a do auditor fiscal, que por sua vez vale mais do que a do professor ou do operário, enquanto as doenças da população de baixa renda não valem absolutamente nada.
Um exemplo de renúncia fiscal de impostos indiretos que privilegia quem tem mais renda é a isenção de IPI e IOF na compra de automóveis para pessoas com deficiência e autistas. Não há restrição ao valor, bastando declaração de disponibilidade financeira ou patrimonial compatível com o automóvel a ser adquirido. Quanto maior a renda, mais caro pode ser o veículo e maior a renúncia fiscal. A indústria sequer oferece versões adaptadas para os modelos mais simples. Enquanto isso, o máximo que população deficiente de baixa renda pode usufruir é a isenção na tarifa de ônibus, se residir em uma cidade com tal benefício. Aí não se trata de renúncia fiscal: a isenção é custeada pelos demais usuários de ônibus.
4. Campanhas contra o pagamento de impostos:
Mesmo em um ambiente de extrema desigualdade social e sistema tributário desfavorável às camadas econômicas mais baixas, as entidades empresariais fomentam, de forma recorrente e com sucesso, a revolta da população contra o pagamento de impostos. O discurso sugere que existem privilégios para os miseráveis (como o programa bolsa-família), enquanto os demais cidadãos são penalizados. O contraponto bem-humorado desta visão é a frase: “o Brasil é o único país em que rico tem inveja de pobre”.
Nos últimos anos, estas entidades patrocinaram a instalação de “impostômetros” em locais estratégicos das grandes cidades. A finalidade é divulgar a arrecadação nominal de impostos, sem levar em conta o percentual efetivamente pago em relação à renda individual, a elisão fiscal, a sonegação e muito menos a fuga de capitais para paraísos fiscais. Também foi criado o “Dia da Liberdade de Impostos”, que coincidiria, em dias do ano, ao percentual da carga tributária. Alega-se que até este dia os brasileiros trabalhariam apenas para pagar impostos, e só então poderiam usufruir da renda recebida, vendendo a ideia de que dinheiro pago em impostos é dinheiro perdido.
As entidades dizem, ainda, que o Brasil é o país com maior carga tributária no mundo. Pela tabela do Banco Interamericano de Desenvolvimento referente a 2010, isto não é verdade. Confrontadas, as entidades alegam a baixa qualidade dos serviços públicos. Não dizem que o volume anual arrecadado no Brasil equivale a aproximadamente US$ 4,2 mil por cidadão, cerca de 1/3 do valor per capta arrecadado no Reino Unido ou nos Estados Unidos, por exemplo. O real objetivo é promover a redução do Estado, transformando a Estado de Bem-Estar preconizado pela Constituição de 1988 em um Estado Mínimo.
Os próprios patrocinadores das campanhas compõem o grupo de pessoas que, proporcionalmente à renda, menos pagam impostos. Desde 1995 os lucros e dividendos distribuídos pelas empresas são isentos de imposto de renda, fazendo com que as maiores rendas do país sejam isentas, privilégio que só existe no Brasil e na Estônia.
5. Conclusão:
O Brasil, teoricamente, tem sistema tributário baseado na progressividade, que na prática é regressivo. De forma duplamente injusta, os mais pobres não só pagam uma carga, proporcionalmente, mais elevada, como sequer se dão conta. É preciso melhorar a percepção da realidade, pois a busca da justiça fiscal é um meio efetivo para construir uma sociedade mais igualitária e menos violenta.
Pode-se afirmar que o Brasil é, simultaneamente, um paraíso fiscal para os mais ricos e um inferno fiscal para os mais pobres. Ou, como diz Márcio Pochmann, economista e professora da Unicamp: “nós precisaríamos de impostômetros nas favelas”.
*Auditora-Fiscal da Receita Federal do Brasil e associada ao IJF