A “praça” é deles: passou a boiada dos produtos de beleza

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por Maria Regina Paiva Duarte*

CONGRESSO APROVA PROJETO DE LEI QUE FACILITA EVASÃO FISCAL DE GRANDES GRUPOS ECONÔMICOS

Entre tantas boiadas passando, poderosos setores da indústria de supérfluos também passaram a sua.

Em 14 de setembro, o Plenário do Senado aprovou o Projeto de Lei 2.110/2019, que define o termo “praça” para efeito de tributação do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).

Para o leigo pode parecer uma Lei de pouca relevância, sobre um detalhe técnico da legislação tributária. Porém, por trás desta questão estão os interesses de grandes grupos econômicos, em especial os do setor de cuidados pessoais e produtos de beleza.

Caso o PL 2.110/2019 seja sancionado, o prejuízo para os cofres públicos será de muitos bilhões de reais a cada ano[1].

O real interesse do PL 2.110/2019

Como ocorre com outros tributos, a incidência do IPI é alvo de agressivos planejamentos tributários de natureza evasiva, efetuados especialmente por grandes empresas e conglomerados. Um dos mais recentes episódios deste planejamento, relacionado com o IPI, é a discussão entre o fisco e os contribuintes sobre a definição de praça para fins de fixação do Valor Tributável Mínimo (VTM), a base de cálculo do IPI para vendas entre empresas interdependentes. O VTM funciona como um piso para a tributação de produto vendido pelo fabricante para filial ou atacadista antes de chegar ao consumidor final.

Via de regra, o valor do IPI recolhido pelas indústrias é proporcional ao preço cobrado por cada produto, sobre o qual é aplicada a sua alíquota. Trata-se de um percentual que, segundo a Constituição, deve ser fixado em função da essencialidade da mercadoria. Quanto menos essencial o produto, maior a alíquota e vice-versa.

Entretanto, há muitos anos alguns grupos econômicos que produzem os produtos menos essenciais têm buscado formas de recolher menos tributos, não apenas o IPI, como também o PIS, a COFINS e o ICMS. A estratégia adotada foi a criação de outro estabelecimento (com outro número CNPJ), dentro da mesma empresa, ou ainda, outra pessoa jurídica no interior do grupo econômico, que fica encarregado de somente distribuir as mercadorias fabricadas pela indústria. Como os sócios da indústria e da distribuidora são os mesmos, os preços indicados nas notas fiscais emitidas pela primeira são artificialmente reduzidos, abrangendo praticamente só os custos de fabricação, às vezes até inferiores a estes.

O VTM foi criado justamente para evitar a manipulação nos preços praticados nas operações de venda entre estabelecimentos ou empresas do mesmo grupo, consideradas interdependentes, uma vez que, nestes casos, não existe autonomia negocial entre as partes.

É comum que as operações entre as empresas do mesmo grupo sejam meras transferências simuladas de transações de compra e venda. Se uma empresa industrial vende para uma atacadista do próprio grupo econômico, pode atribuir o preço de sua conveniência e não o preço real da operação.  O VTM, portanto, funciona como uma importante medida antievasiva. Segundo a regra, quando uma indústria vende seus produtos para sua própria comercial atacadista, a base de cálculo do IPI deixa de ser o valor da saída do estabelecimento industrial e passa a ser o preço praticado pelo mercado atacadista da praça do remetente, fixado a partir de uma média ponderada.

A regra do valor tributável mínimo do IPI nas operações realizadas entre empresas interdependentes foi criada ainda na década de 1960, sob o entendimento de que nessas transações a base de cálculo não pode ser inferior ao valor de mercado do produto. Mais exatamente, a Lei fixou a regra de que o valor tributável não poderá ser inferior ao preço corrente no mercado atacadista da “praça” da indústria que remete os produtos para a distribuidora.

Nos termos do Código Tributário Nacional, a base de cálculo do IPI deve corresponder ao valor real da operação, que inclui, por exemplo, os montantes necessários para cobrir as enormes despesas com marketing e vendas de produtos de beleza, além das elevadas margens de lucro normalmente obtidas com produtos de marcas famosas, pelas quais o consumidor está disposto a pagar mais.

Exemplificando a situação aqui descrita:

A indústria “vende” determinada quantidade de xampus por, digamos, R$ 200,00, a caixa, para o distribuidor interdependente. Sobre este valor é calculado o valor de vários tributos indiretos, inclusive o do IPI.

O distribuidor, por sua vez irá vender estes xampus para os estabelecimentos comerciais de outras empresas, clientes do grupo econômico, por um valor muito mais alto (digamos, R$500,00, a caixa). Como o distribuidor não é contribuinte do IPI (exceto em relação a alguns produtos), não recolhe qualquer valor adicional do imposto.

Note-se que, excetuada a distribuidora do próprio grupo econômico, nenhum atacadista conseguiria comprar uma caixa de xampus do exemplo por R$ 200,00, e por isto tal preço não corresponde ao valor real de mercado.

A disputa entre fisco e contribuinte gira ao redor da interpretação de “praça”. Para a Receita Federal, praça é um conceito afinado com a realidade do mercado, no qual a base de cálculo do IPI é o preço, de fato, praticado no atacado. As assessorias tributárias dos grandes grupos econômicos, no entanto, forçam o entendimento e criam teses jurídicas estapafúrdias para tentar mostrar que a “praça” se restringe ao município do remetente que, via de regra, é o fabricante. Neste caso, a base de cálculo será o preço de custo do fabricante somando-se apenas a sua margem de lucro, quase sempre próxima a zero.

Com base na legislação do IPI, a fiscalização da Receita Federal vem autuando grandes indústrias para cobrar o valor adicional do IPI correspondente, no exemplo acima, à diferença entre o preço de mercado (R$ 500,00) e o preço artificial (R$ 200,00).

Desde a reforma no CARF em 2015, diversos grupos econômicos sofreram derrotas bilionárias nos julgamentos de seus processos, exceto no caso da empresa Procosa Produtos de Beleza, julgado em 2017 em primeira instância. A Receita Federal teve tese vencedora para os casos das empresas Natura, Avon e Delly Kosmetic:[2]

“As empresas do setor de higiene e beleza começaram a perder uma disputa sobre IPI travada nas turmas do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Desde que o órgão passou por reformulação, em 2015, a Receita Federal conseguiu vencer três processos -apresentados por Natura, Avon e Delly Kosmetic. A alegação é a de que as fabricantes estabeleceram, na venda a distribuidores próprios, valores muito baixos para seus produtos para reduzirem o imposto a pagar.”

“Na última semana, a 1ª Turma da 3ª Câmara da 3ª Seção passou uma manhã inteira analisando a questão, por meio de processo da Natura (nº 16561.720176 /2012-16). Estava em discussão a base de cálculo do IPI cobrado de produtos vendidos pela fábrica, localizada em Cajamar (SP), para distribuidoras espalhadas pelo país.”

As autuações mantidas somaram R$ 872,67 milhões (Natura), R$37,5 milhões (Delly Kosmetic) e R$ 803,9 milhões (Avon).

Em 2019, a 3ª Turma da Câmara Superior deu ganho para a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) em caso de disputa sobre cálculo do IPI em operações de venda entre empresa industrial e atacadista do mesmo grupo. Foi a primeira manifestação da Câmara Superior sobre a matéria e justamente no caso da empresa Procosa Produtos de Beleza, fabricante dos produtos da marca L’Oreal.

Ainda que não possa ser aplicado em todos os processos desta natureza, foi um precedente importante.

Em 2020, a 3ª turma da Câmara Superior do CARF manteve uma autuação da Receita Federal junto à empresa Unilever Brasil em valores superiores a R$ 1,4 bilhão. Na autuação, a Receita demonstrou que a empresa reduziu de forma artificial o valor do IPI ao utilizar como base de cálculo os valores dos produtos na saída da operação industrial. Nesta fase da operação, os preços são um terço menores que os praticados na saída do estabelecimento comercial, que distribui as mercadorias aos pontos de venda.[3]

A gigante transnacional dividiu-se em duas empresas, uma industrial e outra comercial. A Unilever Industrial vende com exclusividade os produtos para a Unilever comercial, que repassa ao mercado. Esta operação foi considerada pela Receita como manobra para reduzir o pagamento de tributos, sendo que os mais de R$ 1,4 bilhão lançados referem-se ao período de apuração dos anos de 2008 a 2010. São apenas três anos, o que dá ideia do volume de arrecadação que pode estar escapando do Estado com a utilização de estratagemas como esse.

Tramitação do PL 2.110/2019 e suas consequências

O PL 2.110/2019, agora aprovado, porém, determina que a palavra “praça” deve obrigatoriamente ser considerada como sinônimo de município. Por ocasião da tramitação do PL, a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado Federal assim se manifestou:

“Com vistas a acabar com a insegurança jurídica decorrente dessa interpretação, é preciso aprovar o PL nº 2.110, de 2019, para dispor textualmente que, para fins de fixação do valor tributável mínimo, “considera-se praça a cidade onde está situado o estabelecimento do remetente”. Dessa forma, as indústrias deixarão de ser autuadas pela fiscalização, o que reduzirá o litígio tributário e diminuirá a incerteza relativa aos empreendimentos.”

É sintomático este trecho do Parecer. De que incerteza estão tratando? Evidentemente, parecem estar se referindo ao risco de serem apanhados com a mão na massa da fraude.

As empresas deixarão de ser autuadas quando cumprirem as normas legais, não porque a Receita queira ou não queira, mas pelo cumprimento da legislação. A apuração do VTM não é punição e muito menos tem o condão de interferir nos negócios das empresas, mas a base de cálculo segue normas válidas para todos, inclusive em benefício do livre mercado tão defendido pelas grandes corporações empresariais. É evidente que é interesse do fisco e de muitos contribuintes também buscar uma definição mais concisa do termo praça, tendo em vista a multiplicidade de formas de operação e de negócios que atualmente existem e mais, estão sempre em transformação.

Em 25/08/2021, pouco mais de um mês atrás, o PL 2.110/2019, relatado pelo senador Anastasia (PSD-MG) estava em pauta para ser votado. Para o relator o conceito de praça historicamente remete ao local onde está situada a indústria[4].

Segundo Anastasia, o Congresso votaria o óbvio, já que a Receita Federal estaria extrapolando a definição de praça: “praça” seria igual a “país”, nos termos do relator. Foi além:

“Não pode a Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB) extrapolar esse limite geográfico para aferir preços em regiões diversas. Essa conduta esbarra no comando legal do art. 15, inciso I, da Lei 4.502, de 1964, e gera litigiosidade, como se observa dos precedentes proferidos pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) sobre a matéria”.

Ora, é no mínimo curiosa a referência do senador Anastasia a decisões do CARF que a Receita Federal estaria desconsiderando e gerando litigiosidade. Vimos que foi o contrário. No CARF, o entendimento já era outro, indicando a forma não restritiva a município do conceito de praça, portanto, alinhado com a realidade do preço praticado no mercado atacadista.

Pelo que pretende o PL, basta que o grupo econômico instale sua distribuidora em outro munícipio que não aquele em que está localizada a indústria para que a Receita Federal não possa cobrar o IPI decorrente da enorme diferença entre o preço real da mercadoria e o preço artificialmente reduzido.

A definição dada pelo PL não tem a menor lógica, exceto a dos interesses inconfessáveis; é juridicamente capenga, pois briga com a realidade dos fatos; sangra o Tesouro e, então, contradiz o discurso dominante da austeridade fiscal acima de todos; e, o mais grave, bate de frente com o interesse público.

Para se determinar o valor de mercado de um produto de beleza, que diferença faz se a distribuidora está instalada no mesmo município da indústria, ou se está instalada em município vizinho?

A resposta é: não há qualquer diferença.

Cabe bem, neste momento, trazer a manifestação do Procurador da Fazenda Nacional e professor de Direito Tributário, Fabrício Sarmanho, em artigo publicado em 30/07/2018, intitulado “Conceito de praça para fixação do Valor Tributável Mínimo”[5]:

“Limitar praça ao Município permitiria que, com a singela decisão de separar formalmente as atividades industrial e comercial em cidades vizinhas, uma empresa reduzisse artificialmente o IPI.”

Para o procurador, a questão é bem simples: “se todas as vendas são feitas à comercial atacadista criada pela industrial, o preço de saída dessa comercial equivale ao preço real no mercado, que é o que se busca no VTM”.

* Maria Regina Paiva Duarte é presidenta do Instituto Justiça Fiscal e integrante da coordenação da Campanha Tributar os Super-Ricos e do coletivo Auditores-Fiscais pela Democracia.


[1] De acordo com a Euromonitor International, em 2018, as vendas do setor de cuidados pessoais e produtos de beleza, que é dominado por alguns poucos grupos, alcançaram 109,7 bilhões de reais Fonte: https://abisa.com.br/grupo-boticario-supera-unilever-no-mercado-de-beleza-brasileiro-e-natura-co-mantem-lideranca-em-2018

[2] http://www.tostoadv.com/setor-de-beleza-perde-no-carf-disputa-milionaria-sobre-ipi/

[3] https://mauronegruni.com.br/2020/03/12/carf-mantem-cobranca-de-mais-de-r-14-bilhao-da-unilever/

[4] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/08/25/votacao-de-pl-que-conceitua-termo-201cpraca201d-na-cobranca-de-ipi-e-adiada-para-quinta

[5] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/contraditorio/conceito-de-praca-para-fins-de-fixacao-do-valor-tributavel-minimo-30072018