Por Luis Fernando Veríssimo, jornal o Globo
O capital financeiro, que usa economia como pasto só para engordar os seus próprios bois já gordos, está ganhando longe do capital produtivo
Nos velhos filmes de caubói, o pano de fundo da trama era, muitas vezes, a guerra entre criadores de gado e agricultores pelos vastos espaços do interior americano, e quase sempre os pecuaristas — rudes gigolôs de vaca que só se interessavam nos campos como pasto — eram os bandidos da história, em contraste com os pacíficos lavradores. A briga se repete através da História econômica dos Estados Unidos, hoje com o capital financeiro no papel de pecuaristas maus e o capital produtivo no papel dos lavradores bons, indefesos diante da truculência do adversário. A não ser quando — como acontecia muito nos filmes — algum mocinho providencial decide defendê-los.
Como prova a crise dos últimos anos, o capital financeiro, que usa a economia como pasto apenas para engordar os seus próprios bois já suficientemente gordos, está ganhando longe do capital produtivo. Nos Estados Unidos, o domínio da indústria financeira sobre a economia e a alma do país tem seus antecedentes na ocupação do seu Oeste bravio, mas agravou-se num passado relativamente recente. Depois dos chamados 30 anos de sonho do capitalismo mundial que se seguiram ao fim da Segunda Guerra, quando tudo parecia estar dando certo — a não ser, claro, para os países “emergentes” que nunca emergem —, a coisa degringolou (do francês “degringoler”, ou “aller à les cucuias”). Culpa da ganância descontrolada do setor financeiro. E da globalização: hoje, das empresas americanas listadas como as maiores na revista “Fortune”, mais da metade tem mais lucros fora do país do que no país. Assim, a imensa classe média americana — que era o mercado natural para a produção americana, como bem entendeu o Henry Ford quando, além de fazer carros baratos, pagava a seus empregados o suficiente para comprá-los — tornou-se irrelevante. Enquanto isso, os bois gordos das finanças nunca se autorrecompensaram tanto. E combatem a regulação da sua atividade como os antigos barões do gado combatiam as cercas.
A novidade do badaladíssimo livro do francês Thomas Piketty sobre a desigualdade no mundo não é a revelação de que aumenta a distância entre ricos e pobres. Isso — uma vez preenchidas certas condições, como a de não ser nem cego nem burro —, todo mundo sabe. Piketty está sendo tão saudado e combatido porque no seu livro “O capital no século XXI” ele diz que, a seguir como vai a economia mundial, com uma casta financeira mandando e desmandando para o seu proveito exclusivo, a distância aumentará cada vez mais. Ao contrário do mantra liberal de que só o mercado livre traz a felicidade. Traz, mas para uns poucos.
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