A Injustiça Fiscal da Financeirização da Economia

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O ajuste fiscal reforça a lógica da financeirização. Uma política desenhada para aumentar as desigualdades. Entrevista especial com Marcelo Milan

Por João Vitor Santos
“Mas o que é a austeridade senão a política de redução de gastos para economizar e remunerar os detentores dos títulos da dívida, mantendo um segmento da economia com rendas (juros) em expansão no momento em que todas as demais rendas (salários, lucros reais e aluguéis) caem?”, questiona o bachareal em Economia.
Imagine uma mesa farta de pães e biscoitos com vários nobres apreciando o lanche. Empanturrados de tanta fartura, saem da mesa e deixam muitos restos que servirão para tapear a fome dos criados da casa. Quando os pães e biscoitos ficam mais escassos, os nobres comem tudo. Os criados, famintos, ameaçam avançar sobre a mesa durante o lanche dos patrões. Estabelece-se o conflito. A metáfora soa infantil, mas pode ser associada ao momento que vive o Brasil. Para o bacharel em Economia e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS Marcelo Milan, o país vive uma espécie de retorno ao modelo neoliberal. “Ainda que mais agressiva, que foi implementada no Brasil e na América Latina nos anos 1990 e que de certa forma foi contida, em maior ou menor grau, nos anos 2000 após o fracasso das mesmas”, completa.
Essa retomada ocorre logo na sequência do que foi uma espécie de ensaio progressista que, apesar de flertar com a financeirização, fez alguns poucos movimentos em busca da redução de desigualdades. “O Brasil concentrou renda e riqueza desde sempre”, avalia Milan, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Entretanto, “por meio de medidas políticas de valorização do salário mínimo e transferências condicionadas foi possível reverter, mas muito pouco, este quadro”. Ou seja, nas palavras do professor “a desigualdade ainda é pornográfica, mas melhorou um pouco”. Porém, a desaceleração econômica fez a aliança que se estabeleceu, mesmo que veladamente, ruir. Começavam a faltar pães e biscoitos. “Parte da base de apoio se voltou contra o governo e passou a pressionar no sentido de reversão das medidas mínimas de redistribuição de renda, já que para manter e expandir a parcela dos juros na renda era preciso reduzir as outras rendas”, analisa Milan.
Marcelo Milan (foto) tem graduação e mestrado em Economia pela Universidade de São Paulo – USP e doutorado em Economia pela University of Massachusetts Amherst.
É professor de Economia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e foi professor visitante na Universidade de Wisconsin, nos EUA.
Foi professor na University of Rhode Island e na University of Wisconsin. Sua área de interesse é macroeconomia financeira, economia política clássica e economia política internacional, com ênfase em moeda e bancos, finanças, economia política dos EUA e do Brasil e poder e dinheiro.
O bacharel em Economia proferirá, na Unisinos, a conferência Financeirização, Bancos, Poder e Dinheiro. A economia política Internacional e seus impactos no Brasil no próximo dia 16 de junho, quinta-feira, às 17h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Gostaria que explicasse a articulação do binômio “Poder” e “Dinheiro”, como Fundamentos da Economia Política Internacional, conceitos trabalhados em seu atual projeto de pesquisa.
Marcelo Milan – O poder, neste caso poder político refletido no Estado nacional moderno, e o dinheiro, como materialização da riqueza abstrata nas economias capitalistas, estão imbricados na sociedade moderna. Apesar das inovações institucionais ocorridas no período mais recente (redes de pagamentos descentralizadas, adoção de moedas estrangeiras como meio circulante nacional e reserva de valor, e principalmente o surgimento de instrumentos monetários supranacionais como o Euro), ainda permanece a forte relação “um país, uma moeda”.
A formação do Estado nacional moderno teve na moeda um instrumento importante de consolidação do poder dos soberanos. Ao mesmo tempo, o surgimento do Estado permitiu a homogeneização do dinheiro em todo o território nacional, substituindo meio circulante de menor qualidade que circulava nas regiões e entre a população depauperada. E ao assim proceder, o Estado consolidou ainda mais seu poder sobre o território (por isso as moedas eram denominadas moedas territoriais, pois possuíam validade limitada ao território sob domínio de um Estado-nação).
No plano internacional, na competição interestatal, a moeda tem sido um dos principais instrumentos de poder empregados pelos Estados nacionais para adquirir vantagens. Os exemplos da libra, e mais recentemente do dólar norte-americano, são ilustrativos nesse sentido (no início dos anos 1980, um pesquisador italiano cunhou a expressão “a arma do dólar” para explicar o poder dos Estados Unidos frente às potências ascendentes, como Alemanha e Japão). O uso internacional do dólar norte-americano também tem sido considerado um privilégio exorbitante por alguns pesquisadores (no sentido de permitir financiar déficits externos da economia norte-americana a custo praticamente zero).
A reação de alguns países, como a China, à preponderância do dólar nas relações monetárias internacionais é outro exemplo de que o dinheiro é um instrumento de poder internacional, exercido pelo Estado emissor, e resistido pelos Estados que não querem se subordinar a esse outro país, ficando dependente da moeda do mesmo. Assim, estes dois elementos, o poder e o dinheiro, ilustram bem os aspectos econômicos e políticos na esfera internacional, se constituindo em dois pilares da disciplina de economia política internacional.

 

“O arrocho de uns, a maioria, é a bonança de outros, de uma minoria”

IHU On-Line – Como o senhor observa o processo de financeirização no mundo hoje e como avalia os impactos no Brasil?
Marcelo Milan – A financeirização é um dos fenômenos mais marcantes do capitalismo contemporâneo e se apresenta como a principal característica econômica do período atual. A financeirização pode ser observada na divergência entre o crescimento da riqueza financeira e da riqueza real, com o rápido crescimento da primeira e a relativa estagnação da última em praticamente todo o mundo, com exceção da China, que não se encontra ainda financeirizada (por manter, entre outros, forte controle sobre as atividades do setor financeiro e bancário e controlar os fluxos de capitais de e para o país).
Desde os anos de 1970, esta tendência tem se configurado, se consolidando nos anos 1990 e se ampliando nos anos 2000. As empresas não financeiras passam a ter fontes financeiras de receita, e a tesouraria passa a ter importância central nas estratégias empresariais de expansão da lucratividade. Ao mesmo tempo, subsidiárias financeiras são criadas para financiar as atividades-fim das empresas, mas acabam ganhando centralidade nos processos decisórios. Os exemplos clássicos são a GMAC, da General Motors, e a GE Capital, da General Electric. A primeira deveria apenas prover crédito para facilitar a aquisição de automóveis, mas se envolveu com títulos hipotecários podres na crise do subprime e sofreu perdas elevadas.
Financeirização no Brasil
Esta é outra faceta do processo: ele também gera perdas financeiras substanciais, principalmente para as empresas não financeiras que adotam posturas especulativas. Isso se reflete também no Brasil, como ficou claro nos casos Aracruz e Sadia, que sofreram perdas de bilhões de reais por especulação com derivativos, os instrumentos que representam a essência da financeirização. Esse é um dos impactos do processo de financeirização no Brasil. Mas o principal é a perda de dinamismo da acumulação real de capital, isto é, investimento produtivo que amplia a capacidade e introduz inovações. As empresas passam a acumular ativos financeiros e buscar rendas financeiras, reduzindo a atividade produtiva.
Neste caso, os ganhos e a rentabilização do capital passam a depender de uma escalada na valorização dos capitais investidos em atividades financeiras. No Brasil se tem o caso interessante em que reduções nas taxas de juros são lamentadas pelas empresas não financeiras, que deveriam comemorar a queda no custo da captação de recursos.
IHU On-Line – Em que medida o atual quadro econômico do Brasil é fruto de uma política econômica financeirizada? O que trouxe o país para índices de crescimento tão baixos e até negativos?
Marcelo Milan – A financeirização afeta as decisões empresariais do ponto de vista da composição dos ativos (aumento da participação dos ativos financeiros). A política econômica vai refletir essa tendência de forma indireta, contribuindo para aprofundá-la. Autores como o ex-ministro Bresser Pereira associam o regime de metas de inflação à pressão exercida pelos rentistas (detentores de riqueza que vivem de rendas financeiras) de manutenção de taxas elevadas de juros, que remuneram o capital de forma bastante atrativa. Assim, as empresas não financeiras podem investir em ativos atrelados a esta remuneração pelas elevadas taxas de juros e reclamar quando as taxas caem e suas receitas financeiras são reduzidas. A política econômica não é financeirizada, mas contribui para aprofundar a financeirização.
Pelo lado fiscal, houve inúmeras tentativas de estimular o investimento real por meio de subsídios tributários e creditícios junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento – BNDES, sem muito sucesso. E no período anterior houve muitos anos com superávit fiscal, motivado pela necessidade de pagar os juros da dívida pública interna. Ou seja, criar as condições para remunerar sem muita incerteza os detentores desta forma de riqueza, sejam empresas financeiras ou não financeiras.
Tudo converge para uma situação de economia anêmica: taxas de juros elevadas desestimulam o investimento real e estimulam o rentismo financeiro, a política fiscal de superávits aponta para as garantias de que esta forma de acumulação será recompensada pela manutenção de uma folga fiscal.
O resultado é uma economia que não tem por que investir em ativos produtivos e só o continua fazendo pela existência de empresas ainda não financeirizadas ou pelo investimento de empresas públicas, como a Petrobrás. A tendência seria de baixo crescimento e estagnação, com alguns períodos de exceção. Mas quando as medidas fiscais se voltam para o investimento produtivo e ele não acontece, cai a atividade econômica, cai a arrecadação e a situação fiscal passa de superávits para déficits.
O impacto da austeridade
Com a reorientação no sentido da austeridade, o quadro se torna ainda mais problemático e a crise se aprofunda. Mas o que é a austeridade senão a política de redução de gastos para economizar e remunerar os detentores dos títulos da dívida, mantendo um segmento da economia com rendas (juros) em expansão no momento em que todas as demais rendas (salários, lucros reais e aluguéis) caem? A financeirização certamente contribui para o estado atual da economia, mesmo que não o explique totalmente.
IHU On-Line – A política econômica de arrocho, o chamado ajuste fiscal, reproduz a lógica de financeirização? Por quê? Em que medida essa política pode representar um aumento das desigualdades e retrocessos na conquista de direitos e proteções constitucionais?
Marcelo Milan – Sim, ela reforça a lógica da financeirização, pois aponta para redução de gastos públicos na oferta de bens e serviços do Estado, para manter os pagamentos daqueles segmentos que recebem a maior taxa de juros real do mundo.
Sendo essa a lógica, por que acumular ativos reais? Por que produzir bens e serviços para vender ao Estado, direta ou indiretamente, se há renda garantida pela aquisição de riqueza financeira, principalmente títulos públicos? Ou seja, não importa o que houver, a renda deste segmento está garantida e não sofrerá os impactos das medidas de arrocho. O arrocho de uns, a maioria, é a bonança de outros, de uma minoria. Esta política não representa um aumento das desigualdades. Ela é desenhada para aumentar as desigualdades pela lógica da mudança na composição das rendas (queda nos salários e ampliação dos lucros, por exemplo) e da produção (redução dos bens e serviços públicos universalmente acessíveis e ampliação dos serviços financeiros de acesso restrito).
‘Gastos sociais não cabem no orçamento’
Os retrocessos na conquista de direitos e proteções constitucionais são ilustrados pela redução de gastos e mudança na regra de determinação da evolução dos próprios gastos em saúde, educação, previdência etc. A regra é simples: reduzir os gastos públicos em bens e serviços essenciais, reduzir as transferências para famílias de menor renda e ampliar as transferências para o segmento rentista. A desigualdade só pode aumentar. A ampliação das transferências financeiras para famílias abastadas “expulsa” as transferências para famílias pobres e miseráveis e os gastos sociais do orçamento. Daí a frase de que “os gastos e transferências sociais não cabem no orçamento”.
Não cabem porque o orçamento deve estar, nesta visão, voltado apenas para atender as necessidades dos rentistas. Então o correto seria completar a frase: “os gastos e transferências sociais não cabem no orçamento porque o orçamento deve priorizar as famílias ricas e suas receitas com juros, isto é, para pagar mais juros é preciso pagar menos Bolsa Família”. Assim, os gastos com Bolsa Família, que perfazem menos de 1% do PIB, devem ser reduzidos, junto com gastos mais significativos com saúde, educação e previdência, para ampliar o pagamento de juros, que ficou próximo de 10% do PIB no ano passado.

 

“A lógica é reduzir o papel do Estado até ele desaparecer”

IHU On-Line – Qual sua avaliação quanto às primeiras medidas da área econômica propostas pelo governo interino de Michel Temer? O que está por trás da lógica que norteia as estratégias do ministro da Fazenda Henrique Meirelles e sua equipe?
Marcelo Milan – As primeiras medidas apontam para um retrocesso, que ainda não é completo, e só o será caso o golpe parlamentar prospere em definitivo. Caso se configure esta tendência, será o maior ataque à população pobre e miserável e aos trabalhadores desde a ditadura civil e militar dos anos 1960 (há mais semelhanças neste caso, porém, como a versão da bandeira nacional utilizada como símbolo pelo Poder Executivo). Trata-se de um movimento de restauração de um tipo de ordem oligárquica e, logo, retrógrada em todos os sentidos: econômico, político, cultural e moral, mesmo que com elementos aparentes de modernidade (a presença de elites urbanas, financeiras, e as vinculações com o capital internacional representado pelo próprio Meirelles).
A lógica é reduzir o papel do Estado até ele desaparecer. Brinca-se que a relação Gastos Públicos/PIB tende a zero quando o PIB tende ao infinito. O objetivo é reduzir o papel do Estado o máximo possível, mantendo as despesas no máximo constantes em termos reais. Mas isso vai esbarrar em sérios problemas, principalmente do ponto de vista da previdência, já que o envelhecimento da população é inevitável. Ou seja, o nominalismo de Meirelles e equipe segue a lógica neoliberal, ainda que mais agressiva, que foi implementada no Brasil e na América Latina nos anos 1990 e que de certa forma foi contida, em maior ou menor grau, nos anos 2000 após o fracasso das mesmas.
Desnacionalização de ativos
O movimento de desnacionalização dos ativos também deve se aprofundar. Todavia, não poderia deixar de ser contraditório. O parlamento aprovou um déficit elevado, e mesmo exagerado segundo alguns analistas. Aparentemente a Fazenda não aprovou algumas medidas, como os reajustes a segmentos da burocracia estatal que desempenharão papel fundamental na restauração oligárquica (principalmente no Poder Judiciário). De qualquer forma, eles apresentam um discurso de austeridade e adotam medidas de estímulo fiscal, pois sabem que a austeridade não funciona em geral, e menos ainda em situações recessivas. Por outro lado, como o segmento que vai receber aumentos possui renda elevada, parte do aumento vai repor perdas inflacionárias (quando muito) e outra parte pode ser poupada, não gerando os resultados esperados.
IHU On-Line – Diante dos cenários nacional e internacional, que caminhos são possíveis de se vislumbrar para conceber uma reversão no quadro de baixo crescimento econômico no Brasil? Quais são as alternativas desde a perspectiva econômica?
Marcelo Milan – A economia internacional tem grande chance de entrar em novo período de turbulência financeira que, somado ao quadro geral de estagnação na Europa e desaceleração na China, podem gerar uma crise profunda. Ou seja, do ponto de vista do setor externo, será difícil uma retomada mais robusta. Até porque o ministro interino das relações exteriores, José Serra, não tem o menor apelo diplomático, gerando rejeição na América Latina, na Europa e na África (onde embaixadas devem ser fechadas).
A demanda interna acaba sendo a principal saída. O consumo das famílias não deve aumentar com o desemprego, contenção salarial e a contração do crédito. O investimento não deve ser ampliado tão cedo, dadas as restrições de crédito, as elevadas taxas de juros, a quebra dos setores petróleo e da construção civil, a queda nos lucros e a menor atividade econômica, proporcionada também pela própria financeirização.
Sobra o gasto do governo. O déficit anunciado pode representar algum alívio, caso seja bem direcionado para setores com elevados efeitos multiplicadores. De qualquer forma, a trajetória de crescimento depende, sobretudo, do investimento. O governo vai apostar na privatização e nas concessões. A primeira é simples troca de propriedade e mudança de gestão e não tem impactos relevantes no curto prazo (e muitas vezes, pelas características dos setores em questão, nem mesmo no longo prazo). As concessões podem também ter algum impulso e ampliar os investimentos, mas exigiria uma complementariedade com uma produção maior que utilizasse a nova infraestrutura cedida ao capital privado (por exemplo, exportação ou maior circulação interna de bens). O mesmo é válido para concessões no setor elétrico.
Tributação de estoques
Uma alternativa seria tributar estoques (riqueza acumulada) e utilizar os recursos para investimento público (cujos multiplicadores são consideráveis). A riqueza (além da renda dos muito ricos) é muito pouco tributada no Brasil, e boa parte da tributação potencial sobre os mais ricos é sonegada e desviada para paraísos fiscais. Isso (tributação de estoques) diminuiria a necessidade de financiar uma expansão dos gastos pela emissão de títulos públicos e os correspondentes fluxos de juros para os rentistas. Esta medida dificilmente acontecerá, porém, pela própria lógica da restauração neoliberal e oligárquica em curso.
Então, a situação é de pessimismo, pois o aperto da população de menor renda criará rodadas de queda na renda agregada. Mas a economia não é ciência exata, e outras interpretações são possíveis. Fenômenos inesperados acontecem e trazem surpresas.
IHU On-line – Como compreender a evolução do capitalismo contemporâneo brasileiro e seu impacto frente à desigualdade histórica que existe no país? Como avalia a política econômica adotada pelos governos petista nesse contexto histórico do capitalismo nacional?
Marcelo Milan – O capitalismo em geral é concentrador de renda e riqueza por definição. O capitalismo contemporâneo, sem as ameaças produzidas pela guerra fria, é ainda mais concentrador. Os dados pesquisados pelo economista francês Thomas Piketty são bem claros quanto a isso. O memorando que vazou do Citibank sobre a plutonomia é outra evidência acerca da crescente desigualdade (e neste caso em defesa da mesma). O mundo experimentou um período dourado no pós-II Guerra, com elevação do crescimento, da produtividade, do emprego e queda na desigualdade. Contudo, o neoliberalismo mudou esse quadro. E a dissolução das economias de comando central acelerou o processo de concentração de renda e riqueza nos anos 1990.
O Brasil concentrou renda e riqueza desde sempre, mesmo antes do surgimento do capitalismo. O capitalismo brasileiro também foi excludente e concentrador. Mas por meio de medidas políticas de valorização do salário mínimo e transferências condicionadas foi possível reverter, mas muito pouco, este quadro. Dados do imposto de renda mostram que o Brasil segue tão desigual como antes, e que a parcela da renda do 1% mais rico pouco mudou nos anos recentes.
Por outro lado, a participação dos salários na renda nacional aumentou. De qualquer forma, em termos de renda real o acesso mais amplo ficou claro no período recente: aumento de viagens aéreas, aumento no número de matrículas no ensino superior, aumento da ingestão de proteínas de origem animal etc. Ou seja, a desigualdade ainda é pornográfica, mas melhorou um pouco. Esse tipo de mudança não acontece sem medidas de política como as mencionadas acima. A coalizão política que governou o país nos anos 2000 permitiu avançar minimamente nesta direção, mesmo que sem comprometer as tendências já mencionadas de financeirização e privilégios aos rentistas.
Entretanto, a aliança política se manteve enquanto o produto se expandiu. Com a desaceleração econômica, parte da base de apoio se voltou contra o governo e passou a pressionar no sentido de reversão das medidas mínimas de redistribuição de renda, já que para manter e expandir a parcela dos juros na renda era preciso reduzir as outras rendas, principalmente salários. A desigualdade então volta a aumentar. E se a restauração oligárquica for bem-sucedida, o capitalismo brasileiro voltará a ser o que sempre foi: uma máquina pouco eficiente do ponto de vista da inovação e do progresso técnico autônomo que amplia a produtividade, mas extremamente eficiente em concentrar renda e riqueza, principalmente via Estado.

 

“A desigualdade ainda é pornográfica”

IHU On-Line – Qual tem sido o impacto do tripé macroeconômico no combate à desigualdade no Brasil? Qual política tem se constituído no principal vilão: juros, monetária ou fiscal?
Marcelo Milan – O tripé se constitui em uma política macroeconômica que combina flutuação cambial, superávits primários e regime de metas de inflação. No regime de metas de inflação o instrumento de política monetária é a taxa de juros. Portanto, os aspectos monetários são referentes aos juros, não aos agregados monetários.
A política fiscal de superávits primários para pagamento dos juros dos rentistas não se constituiu em um impedimento para reduzir a desigualdade de renda, pelo menos a divisão da renda entre salários e rendas do capital. Ela apenas foi tímida para combater a desigualdade: enquanto o Bolsa Família se constitui em parte ínfima do orçamento, os juros consomem um pedaço considerável. Por outro lado, os gastos sociais em saúde e educação e as transferências previdenciárias são políticas fiscais que contribuem para reduzir a desigualdade.
Já do ponto de vista da tributação, a mesma é regressiva no Brasil, dado o peso dos impostos indiretos. E a riqueza praticamente não é tributada. No geral, como os superávits primários são gerados para pagar juros, e eles embutem uma contenção de gastos sociais importantes, eu diria que a política fiscal é levemente concentradora de renda e riqueza no Brasil. Já a política de flutuação cambial permitiu uma apreciação da moeda brasileira até alguns anos atrás, permitindo ampliar as importações.
Política cambial por menos desigualdade
Seria preciso ver em que medida a cesta de consumo típica de uma família de baixa renda, ou de trabalhadores, possui muitos bens importados. Neste caso a política cambial poderia contribuir para reduzir as desigualdades. Por outro lado, muitos bens de luxo são importados ou consumidos no exterior, e uma moeda apreciada também favorece o consumo das famílias abastadas. Com o aumento do peso das viagens internacionais na conta corrente do Brasil, é possível sugerir que a política cambial também concentra renda, já que quando a moeda se deprecia e os preços praticados no Brasil aumentam, os mais ricos podem se proteger mais que a população pobre.
Finalmente, a política monetária que pratica as maiores taxas de juros do mundo só pode concentrar renda, já que boa parte da população não tem acesso a ativos remunerados a taxas elevadas de juros. A política monetária no Brasil é claramente concentradora de renda. Além disso, a apreciação cambial em grande parte reflete taxas de juros elevadas frente aos demais países, e os déficits nominais são resultado da inclusão do pagamento de juros nas despesas do governo. Logo, a política monetária concentra renda por si, pela política cambial e pelos resultados fiscais. Sendo estas elucubrações válidas, pode-se sugerir que o tripé macroeconômico aumenta a desigualdade de renda no Brasil. E o principal vilão parece ser a taxa de juros.

“O Brasil concentrou renda e riqueza desde sempre”

IHU On-Line – Como podemos pensar a distribuição de renda como parte de uma política monetária?
Marcelo Milan – Não diria parte, mas resultado. A política monetária opera variando um instrumento, a taxa de juros, que tem relação direta com uma forma de renda, o juro. E este instrumento afeta decisões sobre geração de renda. Se a taxa de juros é elevada, há menor criação de outras rendas na economia, pois os agentes com disponibilidade de recursos passam a acumular ativos atrelados à taxa de juros. Assim, a renda de juros aumenta, enquanto as outras rendas não se expandem ou até mesmo caem. Isso é distribuição de renda.
Quando a taxa de juros é menor, a economia acumula ativos reais que têm complementariedade com o emprego, ampliando também a quantidade de bens e serviços produzidos. O aumento no emprego pode aumentar os salários. O emprego do trabalho é condição para a existência de lucros. Assim, uma forma de renda, juro, cai, e as outras formas de renda aumentam. Isso também é distribuição de renda. Logo, a política monetária está intrinsecamente associada à distribuição de renda, pois é política que modifica a taxa de crescimento de uma forma de renda e determina o ritmo de crescimento das demais formas de renda.


 
Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/o-ajuste-fiscal-reforca-a-logica-da-financeirizacao-uma-politica-desenhada-para-aumentar-as-desigualdades-entrevista-especial-com-marcelo-milan/556266-o-ajuste-fiscal-reforca-a-logica-da-financeirizacao-uma-politica-desenhada-para-aumentar-as-desigualdades-entrevista-especial-com-marcelo-milan