3 anos de Brumadinho, 300 anos de tragédia

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O ouro que dali se extraiu em grandes quantidades gerou mais riqueza na Europa do que em Portugal, e mais em Portugal do que nas Minas, onde a fortuna que ficou concentrou-se nas mãos de poucos, seguindo a fórmula ainda hoje cara às nossas elites. Como disse um autor, “em meio a tanta riqueza, começamos a ser pobres”.

Laura de Mello e Souza, Pobres, rudes e ameaçadores

No solo brasileiro nada restou do impulso dinâmico do ouro, exceto as igrejas e as obras de arte. […] Em mãos estrangeiras, o ferro não deixará nada além do que deixou o ouro.

Eduardo Galeano, As veias abertas da América Latina

Dormia

A nossa pátria mãe tão distraída

Sem perceber que era subtraída

Em tenebrosas transações

Chico Buarque, Vai Passar[1]

A tragédia da Vale em Brumadinho completou três anos neste último 25 de janeiro. Vista de longa duração, pode-se compreender que a tragédia da Vale em Brumadinho não constitui uma surpresa. Os trechos que abrem o texto dão conta de demonstrar essa constatação, nem tanto pela indicação de precedentes (ainda assim, lembremos de Mariana em 2015), mas pela indicação de que a mineração, tal como praticada ao longo desses mais de 300 anos, remontando ainda ao século XVIII, caracteriza-se pelo seu traço essencial: empobrecer o Brasil. Como diz o autor citado por Laura de Mello e Souza: “em meio a tanta riqueza, começamos a ser pobres”[2].

Conforme lembra Eduardo Galeano, se o ouro nos legou nada mais que algumas belas igrejas e obras de arte, é difícil imaginar que o ferro e afins, percorrendo estes mesmos caminhos já conhecidos, será capaz de fazer algo diferente: a história se repete e o cenário é ainda mais desolador.

Lembremos, inicialmente, das Minas setecentistas, lugar que por tanto tempo povoou a imaginação de aventureiros e que, quando descoberta, fez a felicidade da Coroa Portuguesa. A despeito da abundância de ouro, o quadro era ambíguo, segundo Laura Vergueiro, “quando a capitania das Minas Gerais conhecia o seu apogeu, milhares de homens viviam na miséria, passavam fome, vagavam sem destino pelos arraias, tristes frutos deteriorados de um sistema econômico doente e de uma estrutura de poder violenta”. A concentração da riqueza em torno da extração de ouro era a regra, em 1710, por exemplo, apenas cinco pessoas foram responsáveis por 47% de todo o ouro produzido na Intendência de Rio das Mortes. Para Angelo Carrara, essa situação não era a exceção: apesar do ouro ter fomentado, ainda que em bases mais efêmeras do que permanentes, o mercado interno a partir de atividades de transporte, pastoris e agrícolas, a mineração nas Minas do século XVIII, calcada no trabalho escravo e sob a égide da Coroa, não resultou em ganhos substantivos para a Colônia ou para a região. A partir da escassez do ouro, “todo o sistema se ia assim atrofiando, perdendo vitalidade, para finalmente desagregar-se numa economia de subsistência”. Na avaliação de Celso Furtado, o potencial e possível desenvolvimento manufatureiro a partir da extração da riqueza do ouro não se concretizou, sendo o primeiro capítulo de uma longa história de exploração e empobrecimento nacional[3].

Já em épocas mais recentes, Getúlio Vargas e o ímpeto industrializante de seu governo colocam a mineração novamente em papel de destaque no cenário econômico brasileiro. A partir da década de 1940, o governo federal implementou uma política mais agressiva na área da exploração mineral. A chamada indústria pesada ou de base, entre elas a siderúrgica, era peça essencial à industrialização. A criação da Companhia Siderúrgica Nacional em 1941 e da Companhia Vale do Rio Doce em 1942 são exemplares do projeto nacionalista e desenvolvimentista desta época. Dessa forma, eliminavam-se “pretensões que a Itabira Iron Ore Company mantinha no Brasil, pretensões contestadas por políticos e intelectuais desde a Primeira República”.

Se por um lado os esforços varguistas tinham indicado a direção nacional-desenvolvimentista da exploração mineral brasileira, por outro lado a questão não estava de todo resolvida. Duas décadas depois, entre os dias 13 e 18 de janeiro de 1964, por exemplo, na “Semana Popular em Defesa do Minério” realizada em Belo Horizonte, nas palavras de Ana Moraes, discutia-se “a exportação desenfreada dos recursos minerais brasileiros, denunciando o que seria uma ação ‘colonialista’ das multinacionais”. Nesta esteira, alguns impactos concretos foram sentidos pelas multinacionais, sendo o “caso Hanna” um exemplo conhecido. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito, a partir de laudos que indicavam irregularidades na exploração por parte da empresa estadunidense, revogou os direitos minerários da empresa e promoveu a nacionalização das minas. Em abril de 1964, porém, “a conta chegou” através do golpe de estado empresarial-militar, apoiado por grandes grupos de mineração, que derrubaram o Presidente João Goulart e seu projeto reformista. Com a ditadura, na avaliação de Ricardo Bueno, boa parte do setor minerário foi alvo de intensa exploração privada e estrangeira, contribuindo à “modernização conservadora” (leia-se modernização concentradora de renda) brasileira[4].

Nos anos 1990-2000, com o alvorecer do século XXI, o cenário pouco mudou. A privatização da Vale, realizada durante o governo Fernando Henrique Cardoso, é sem dúvida operação suspeita, já que, como costuma se dizer, a estatal brasileira foi vendida “a preço de banana”. A próspera e lucrativa empresa pública Vale tornou-se objeto de apetite de grandes grupos econômicos nacionais e internacionais, sendo privatizada no governo FHC em maio de 1997, pelo preço de 3,3 bilhões de dólares, valor considerado escandalosamente baixo (além do BNDES ter financiado a juros subsidiados/pago boa parte), pois a avaliação das reservas dos minérios poderia elevar o valor para aproximadamente 200 bilhões na época. Uma das razões alegadas para privatização era abater a dívida externa, mas o dinheiro foi empregado em gastos correntes e demandas parlamentares. Nos 21 anos de privatização, os proprietários/acionistas, que compraram por 3,3 bilhões usando recursos do BNDES, receberam nada menos que R$ 320 bilhões de lucros e dividendos! Existe negócio pior que esse para sociedade brasileira?

Além disso, há muitas denúncias de irregularidades na operação de privatização, conforme demonstram os jornalistas Amaury Ribeiro Jr e Aloysio Biondi. Como se os absurdos e tragédias fossem infindáveis, ainda nos dias correntes, para agravar o quadro, a Vale, via manipulação de preços de transferência e uso de empresas offshore em países ou territórios considerados “esconderijos fisco-criminais” (normalmente denominados paraísos fiscais), contribui cada vez mais à manutenção da “mineração que empobrece o Brasil”: o minério sai do país em estado bruto (sem industrialização local), de forma subfaturada (evadindo impostos), é extraído de forma muitas vezes irregular e predatória, normalmente causando danos às comunidades locais, e, no final das contas, é reimportado na forma de aço para consumo interno em valores muito mais elevados, deixando de gerar empregos, renda e riqueza no Brasil. A atualidade da canção se mantém: “Dormia / A nossa pátria mãe tão distraída / Sem perceber que era subtraída / Em tenebrosas transações”.[5]

A tragédia da Vale em Brumadinho, que completa agora tristes 3 anos, vista a partir da perspectiva histórica da longa duração, demonstra a continuidade de um modelo de exploração mineral que, a despeito das óbvias mudanças no passar dos séculos, ainda se mantém igual à exploração colonial de séculos passados. Nascido no seio do escravismo colonial, a exploração mineral no Brasil tão bem se adaptou ao nosso capitalismo periférico. Trata-se de um modelo em que vidas são descartáveis em benefício da acumulação irrestrita de capital, tanto local como estrangeira. É nesta esteira que problemas derivados dessa exploração mineral predatória também podem ser compreendidos: a devastação ambiental, tão comum nos megaprojetos de mineração, o empobrecimento das comunidades e territórios do local da exploração e o desprezo por qualquer projeto popular de democratização desses recursos e afins. Os recursos minerais acabam sendo transformados em barreiras e empecilhos ao fim último da mineração de gerar riqueza e bem estar à população, tornando-se no que atualmente são: instrumento de acumulação abusiva de capital. Que a tragédia da Vale em Brumadinho possa nos levar a caminhos diferentes, para uma outra relação com a mineração e com o meio ambiente, para que não existam mais vidas passíveis de serem “apagadas” pela negligência de grandes corporações em nome da acumulação irrestrita e abusiva de capital através da geração de lucros a qualquer custo. Em suma, que encontremos outro modelo para viver[6].


NOTAS

[1] Os trechos da epígrafe são, respectivamente: MELLO E SOUZA, Laura. Pobres, rudes e ameaçadores. In: FIGUEIREDO, Luciano. (org.). História do Brasil para ocupados. 2º ed. Rio de Janeiro: LeYa, 2013. p. 316; GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2018. p.88-89; Chico Buarque, Vai Passar, composição: Francis Hime e Chico Buarque, 1984.

[2] Argumentação mais aprofundada e detida foi feita por nós em: LOEBENS, João; REIS, Arthur. La minería que empobrece Brasil. In: MELÉNDEZ, G; CANO, J; BOLÍVAR, H. (orgs.). Territorios neoextractivismo y derechos indígenas en Latinoamérica. Durango: Ed. Universidad Juárez del Estado de Durango, 2021. Disponível online.

[3] Cf. VERGUEIRO, Laura. Opulência e miséria das Minas Gerais. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 74-75; CARRARA, Angelo. Ouro de tolo. In: FIGUEIREDO, L. Op. cit., p. 153; FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Brasília: Ed. Unb, 1963. p. 108.

[4] Sobre a CVRD e a CSN, ver: Criação da Companhia Vale do Rio Doce. FGV-CPDOC, s. d; CSN, uma decisão política. FGV-CPDOC, s. d. Ambos disponíveis online. Já para o período seguinte, ver: MORAES, Ana. Os mineradores e a conquista do Estado: do “caso Hanna” ao golpe de 1964. In: CAMPOS, Pedro; BRANDÃO, Rafael; LEMOS, Renato. (orgs). Empresariado e ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Consequência, 2020; BUENO, Ricardo. O ABC do entreguismo no Brasil. 4º ed. Petrópolis: Vozes, 1981.

[5] Consultar, respectivamente: BIONDI, Aloysio. O Brasil privatizado: um balanço do desmonte do Estado. São Paulo: Geração Editorial, 2014; RIBEIRO Jr., Amaury. A privataria tucana. São Paulo: Geração Editorial, 2011; REIS, Arthur; LOEBENS, João. A omissão das nomenclaturas tributárias: um breve estudo sobre os “paraísos fiscais”. Instituto Justiça Fiscal, Porto Alegre, 28 nov. 2019.

[6] Sobre Brumadinho, consultar: FERREIRA, Dom Vicente. Brumadinho: 25 é todo dia. São Paulo: Expressão Popular, 2020; GOULART, Júlia. Memórias de Brumadinho: vidas que não se apagam. São Paulo: Autonomia Literária, 2019.

Fonte: https://hhmagazine.com.br/3-anos-de-brumadinho-300-anos-de-tragedia/


SOBRE OS AUTORES

João Carlos Loebens: Auditor Fiscal da Receita Estadual do Rio Grande do Sul, doutorando em economia pela Universidad de Alcalá e membro do Instituto Justiça Fiscal.
Arthur Harder Reis: Licenciando em história, 4º semestre, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.