Previdência Social não é um negócio, é um Direito

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Dão Real Pereira dos Santos*
São tantos os argumentos contra a Reforma da Previdência que é difícil compreender a insistência que os meios de comunicação têm dado à esta reforma. Eles dizem, de boca cheia, que sem reformar a previdência o país quebra. Quando analisamos os principais argumentos percebemos que faltam algumas peças neste quebra-cabeças. Os problemas alegados como motivos para a reforma ou não existem ou poderiam ser resolvidos de outra forma muito menos traumática para os trabalhadores.
A primeira questão é o tal do déficit da previdência. Insistem que o somatório dos benefícios pagos tem que ser menor do que o somatório das contribuições dos empregados e das empresas. Ou seja, os defensores da reforma desconsideram que a previdência pública é parte do que chamamos de seguridade social e que o financiamento da seguridade social se dá por várias fontes, além das contribuições previdenciárias. A Constituição Federal prevê diversas contribuições sociais para financiar a seguridade além dos próprios orçamentos fiscais dos governos.
A previdência constitui um direito, assim como a saúde, a educação, a assistência, o acesso à cultura, etc. Aliás, a previdência pública é a exata concretização do princípio da solidariedade. Trata-se de um grande pacto civilizatório de solidariedade entre as gerações, em que a sociedade financia as condições para que os mais velhos ou os incapacitados possam viver sem ter que trabalhar.
Os direitos são todos financiados pelos tributos. Dar à previdência um caráter de poupança individual é uma forma de distorcer a realidade, transformado a previdência numa mercadoria.  A existência de contribuições individuais não significa que estas contribuições precisem ser suficientes para bancar os direitos. Diversas outras fontes precisam ser previstas para isso e a nossa Constituição assim prevê.
Nesta mesma conta, deliberadamente equivocada, também são colocados na cesta dos benefícios diversos gastos que possuem natureza assistencial como por exemplo os Benefícios de Prestação Continuada, a previdência rural etc. Para estes benefícios não se pode esperar que houvesse alguma contribuição prévia.
Se fosse, de fato, uma questão contábil fiscal, em situações de queda do crescimento e do aumento do desemprego, a manutenção do direito de aposentadoria deveria ser garantida pela revogação de renúncias fiscais e pela criação de outras fontes de arrecadação, além de uma maior efetividade no combate à sonegação.
Outra questão que tem sido repetida quase como um mantra é a elevação da expectativa de vida da população, como se, a partir de hoje, todo mundo fosse viver muito mais, quando, de fato, a expectativa considerada é para quem nasce hoje. Além disso, a expectativa de vida no Brasil não tem o mesmo significado que teria em uma país com baixo nível de desigualdade social. Ou seja, considerar a expectativa de 76 anos (média esperada) para definir regras previdenciárias significa condenar um grupo muito expressivo de brasileiros a nunca se aposentar, pois não sobreviverão à idade mínima estabelecida de 65 anos para homens e 62 anos para mulheres.
Às vezes, parece até uma conversa de loucos. Quanto mais se apresentam os argumentos e dados para demonstrar que não haveria problema fiscal se a dívida ativa da União fosse efetivamente cobrada, se a sonegação fosse combatida, se os lucros e dividendos distribuídos fossem tributados, se as desonerações fossem revogadas, mais convictos são os discursos de defesa da reforma. Inclusive são propostas mais formas de desoneração. O ministro da economia chega a propor redução da carga tributária. Então qual seria a peça que está faltando nesta história? Para resistir à reforma é preciso compreender seus motivos verdadeiros, ainda que não declarados.
O verdadeiro motivo da reforma pode não estar explícito nos discursos. A conversão da previdência social em um sistema de capitalização individual, talvez seja a verdadeira razão para tanto empenho. Quando dizem que o mercado está sedento pela aprovação da reforma, como um lobo faminto babando-se diante de uma presa, é um claro sinal de que a previdência está sendo vista como um negócio muito lucrativo. Converter o modelo de repartição em um modelo de capitalização significa revogar um dos principais direitos previstos na Constituição Federal. De fato, transforma um direito social em um negócio individual.
O Estado de Bem-estar conquistado em 1988 está fundado na ideia da seguridade social.  A previdência pública, financiada pela sociedade, constitui uma das maiores conquistas do povo brasileiro. Converter este sistema num programa de capitalização individual significa colocar o futuro das pessoas nas mãos do sistema financeiro. Este modelo foi implementado em vários países e não funcionou. A maioria dos países que o experimentaram já retornaram à previdência pública. No Chile temos um exemplo claro deste fracasso. Implementado na década de 1970, na ditadura do Pinochet, o sistema serviu apenas para enriquecer alguns fundos privados de previdência e jogar na miséria grande parte da população. Não é por outra razão, que aquele país tem altos índices de suicídio entre idosos. Muitos aposentados no Chile estão vivendo com menos de 25% do salário mínimo. Mesmo no Brasil não faltam exemplos de fundos de previdência privada que faliram e deixaram os beneficiários literalmente na mão.
A reforma da previdência não é uma questão matemática como tentam fazer parecer de forma simplória. É uma questão essencialmente política que envolve diretamente a escolha por um modelo de Estado. A sustentabilidade matemática do sistema previdenciário é somente um argumento de fácil compreensão, mas falso, pois não é determinante para quem defende a reforma. O que está em curso é a destruição do Estado de Bem-estar. O governo não esconde que trabalha para implantar o Estado mínimo, e Estado mínimo não tem previdência pública. Também não tem saúde pública, educação pública. No Estado mínimo, o ensino superior é apenas para a elite. Ao contrário do Estado de Bem-estar, o Estado mínimo existe para garantir os negócios, não os direitos.


*Dão Real é Diretor de Relações Institucionais do Instituto Justiça Fiscal e membro do coletivo Auditores Fiscais pela Democracia