Legalização dos jogos de azar ou vale tudo por dinheiro

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Projeto de Lei do Senado n° 186/2014 não traz nenhum benefício para a sociedade
Paulo Matsushita *
Presença ilustre na Festa Literária Internacional de Paraty, nessa edição de 2016, a jornalista e escritora bielorussa Svetlana Aleksiévitch – laureada com o Prêmio Nobel de Literatura em 2015, em reconhecimento, segundo o comitê da premiação, por ter erigido “um monumento do sofrimento e da coragem em nosso tempo” -, disse que os historiadores, daqui a quinhentos anos, irão nos considerar uma sociedade primitiva. Ela se referia ao paradoxo de convivência de sofisticação técnica e material com rarefeitos valores morais.
Pois bem, os mesmos historiadores poderão usar a tramitação do Projeto de Lei do Senado – PLS n° 186/2014 como um símbolo das crises política e moral em que o Brasil se encontrava na segunda década do novo milênio. Vejamos.
Desde o dia 7 de julho de 2016 está incluído em Ordem do dia do Senado o substitutivo ao PLS n° 186/2014, de autoria do Senador Ciro Nogueira (PP – PI), que “dispõe sobre a exploração de jogos de azar em todo o território nacional”.
O PLS autoriza, nos termos da Lei e de seu regulamento, a exploração de jogos de azar, sendo considerados como tais: o jogo do bicho, o jogo de bingo – presencial, on-line ou por meio de vídeo -, jogos de cassino em complexos integrados de lazer ou on-line e jogos eletrônicos, inclusive vídeo-jogo. Institui-se contribuição social sobre a receita de concursos de prognósticos devida por aqueles que explorarem os jogos previstos nesta Lei, com alíquotas de 10% para estabelecimentos físicos e de 20% para exploração de jogos on-line. A contribuição será integralmente destinada à Seguridade Social.
Para ilustrar a forma como o projeto de lei é uma pequena maquete das crises a que antes nos referimos, podemos começar de diversos pontos. Cite-se, inicialmente, a ironia de que os artigos 36 e 37 do substitutivo determinam que:

“Art. 36 Nos estabelecimentos de jogos de azar serão afixadas mensagens , em destaque, sobre a possibilidade de vício em razão de não ser observada moderação na prática da atividade”.

Art. 37 A União realizará campanhas educativas a fim de conscientizar a população acerca dos riscos relacionados aos jogos de azar e estimulará a formação de grupos de apoio”.

Com esse bom-mocismo do Parlamento, as instituições, em verdade, lavam as mãos e fecham os olhos para a real dimensão do que está em debate, sob a pressão de grupos de interesses, muitas vezes inconfessáveis, e de olho em polpudos valores que alimentarão os cofres públicos, mas sem que se saiba ao certo o custo social dessa empreitada.
Toda a discussão do projeto ocorreu apenas em bases financeiras, econômicas e fiscais, ignorando-se as outras importantes faces da questão, a saber: sociais, familiares e de segurança e saúde públicas.
O vácuo decorrente de um governo interino e sem legitimidade abre, assim, espaço a todo tipo de ação de grupos dentro das instituições públicas, visando interesses privados e que podem ter graves consequências para a coletividade. Ressalve-se, contudo, que a Presidente afastada transmitira à sua base de sustentação no Congresso sinal verde para o projeto. Outro fato para registro dos historiadores: também os representantes das centrais sindicais UGT, Força Sindical, Nova Central e CSB incluíram a legalização dos jogos de azar entre as propostas alternativas à reforma previdenciária, conforme notícia da Agência Sindical, de 31/5/2016 (1), revelando o quão permeáveis aos grupos de interesse podem ser as lideranças sindicais.
A forma como um projeto de tal impacto social tramita e encaminha-se para apreciação em plenário, sem um debate mais amplo e de forma divorciada dos interesses maiores da sociedade é outro sinal da crise. A propósito: o projeto foi protocolizado em maio de 2014 e deveria tramitar nas seguintes Comissões: Desenvolvimento regional e Turismo; Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática; Assuntos Econômicos; e, por fim, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, à qual caberia decisão terminativa. Em setembro de 2015, contudo – a crise política no país já em alta combustão, como se recorda -, o Presidente do Senado determinou que o projeto fosse discutido tão somente na Comissão Especial de Desenvolvimento Nacional (mais uma ironia), em decisão terminativa. Com isso o PLS passou a ser debatido intramuros e burocraticamente pelos senadores da Comissão, deixando o caminho livre para os lobbies, e ficou sem efeito deliberação anterior da Comissão de Desenvolvimento Regional e Turismo para que fosse realizada Audiência Pública para instrução da matéria.
Não houve, dessa forma, espaço para a exposição dos pontos de vista de médicos, sociólogos, psicólogos, especialistas em segurança pública, de representantes da Receita Federal do Brasil e do Ministério Público, entre outros setores que muito teriam a contribuir para o debate.
Havendo mais discussão, poderíamos saber, por exemplo, por intermédio do psiquiatra Hermano Tavares, coordenador do ambulatório de jogo patológico do Hospital das Clínicas, que o vício em jogatina é uma patologia reconhecida pela Organização Mundial de Saúde desde 1992 e constante do Código Internacional de Doenças. Estima ainda esse especialista que 2,3% dos brasileiros são jogadores natos e, sendo assim, considerando-se a convivência com uma média de três familiares, cerca de dezoito milhões de brasileiros são atingidos pelos danos decorrentes do vício (2).
Seria igualmente interessante reeditar o debate ocorrido em Audiência Pública por ocasião da tramitação do projeto de lei n° 2.254/2007, que também pretendia legalizar os jogos de azar, sendo, ao final, rejeitado. Pronunciou-se, então, o Presidente do Conselho de Controle das Atividades Financeiras – COAF, Antonio Gustavo Rodrigues, no sentido de que o COAF e a Receita Federal não estavam preparadas para a fiscalização do objeto da proposta, tendo a concordância do representante do Ministério da Fazenda.
Reconheçam-se os méritos, em meio a esse momento de desnorteamento político, do Ministério Público Federal que, por meio de sua Secretaria de Relações Institucionais, aprovou a Nota Técnica PGR/SRI n° 65/2016, muito crítica e desfavorável ao PLS n° 186/2014, com fartos e fundamentados argumentos.
Consola também saber que existe o Movimento Nacional Brasil sem Azar – Vidas livres da Jogatina, entidade sem fins lucrativos, que conta, entre seus membros, com advogados, médicos, jornalistas, delegados de polícia, parlamentares, juristas e Procuradores da República. Essa Entidade protocolizou na Secretaria Legislativa do Senado Federal, em 31 de março de 2016, um alentado documento de quase oitenta páginas, elencando diversas razões, inclusive com estudos de especialistas estrangeiros, pelas quais o PLS n° 186/2014 mostra-se ofensivo ao bem-estar dos cidadãos, da família, da sociedade e da economia do nosso país (3).
Por fim, não passará despercebido aos futuros historiadores, certamente, como, a partir das crises econômica e fiscal do país, intensificadas em 2014, propostas defendidas por aqueles que se posicionam pela justiça fiscal, tais como, entre outras, maior tributação das doações e heranças (que chegou a ser cogitada – num jogo de cena, talvez – pelo próprio ultraliberal Joaquim Levy), tributação dos lucros e dividendos distribuídos aos sócios ou o fim da isenção tributária sobre juros de capital próprio, frequentaram timidamente o noticiário e esvaneceram-se no poente, dando lugar a aberrações como a anistia para repatriação de capitais e esta nova investida para a legalização dos jogos de azar.
Eis a crônica de erros, papeis trocados e portas falsas desse triste 2016 dos brasileiros.
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Paulo Matsushita, auditor fiscal da Receita Federal do Brasil, é associado ao IJF.


 

  1. Conforme matéria em: http://economia.ig.com.br/jogadores-compulsivos-tem-crise-de-abstinencia-diz-psicologa/n1237701431363.html , consultado em 12/7/2016.
  2. Conforme matéria em: http://mundosindical.com.br/Noticias/25150,Centrais-unificam-posicao-%20sobre-reforma-previdenciaria , consultado em 17/02/2016.
  3. Disponível em: http://www.senado.leg.br/atividade/rotinas/materia/getPDF.asp?t=190411&tp=1